A modernização de velhas intrigas, em geral extraídas de um clássico da literatura, como a Globo fez com as de Ligações Perigosas, urdidas e situadas por Choderlos de Laclos na França do século 18, traz sempre à baila o truísmo segundo o qual “todas as histórias já foram contadas”. Como em qualquer forma narrativa, o importante não é o quê mas o como, nem toda história recontada ou reapropriada é irremediavelmente desprovida de originalidade. O romance mais original do século passado, Ulisses, de James Joyce, não reciclou a Odisseia de Homero? Autores de todos os calibres não buscaram inspiração em Shakespeare, ele próprio uma esponja de enredos alheios? Buscaram e ainda buscam. A editora Random House desenvolve um projeto, Hogarth Shakespeare, só de modernizações de peças do bardo de Avon, entregues à imaginação de autores contemporâneos como Anne Tyler, Margaret Atwood, Jo Nesbo e Tracy Chevalier. Em junho, sairá o primeiro volume da série, Vinegar Girl, de Tyler, inspirada em A Megera Domada. Atwood escolheu A Tempestade. Nesbo, Macbeth. Em matéria de releitura e modernização, prefiro aquelas experiências fulcradas em novos e surpreendentes protagonistas às simples transposições ao tempo presente. A tragédia de Hamlet recriada no palco e na tela a partir de dois personagens secundários, Rosencrantz e Guildenstern, como fez Tom Stoppard, abriu uma vereda posteriormente ampliada por John Updike, num romance em que Gertrude e Claudius, a mãe e o tio de Hamlet, assumem o centro da narrativa, e que se estendeu a textos canônicos de outros autores como Cervantes, Dickens, Defoe, Stevenson, Melville, Charlotte Brontë e Jane Austen. Kathy Acker atualizou e feminilizou D. Quixote. Peter Carey recriou Grandes Esperanças em torno de Jack Maggs e através dos olhos de Abel Magwitch. A americana Valerie Martin reviu o drama de O Médico e o Monstro do ponto de vista da criada de Dr. Jekyll, Mary Reilly. Em Foe, J.M. Coetzee acrescentou à aventura de Robinson Crusoe e Sexta-Feira uma intrusa náufraga, que além de assumir a narrativa acaba tendo um caso com Daniel Defoe, autor do romance original. Em vez de Ishmael, o enunciador da épica caça à baleia Moby Dick, quem narra Ahab’s Wife, de Sena Jeter Naslund, é a mulher do capitão Ahab. Antes de casar com Jane Eyre, heroína do homônimo romance de Brontë, o byroniano Mr. Rochester viveu com uma louca chamada Bertha Mason, a quem Jean Rhys dedicou todos os capítulos de Vasto Mar de Sargaços. Mais uma variação de Orgulho e Preconceito, desta vez transposta para a América de hoje, com o título de Eligible e assinada por Curtis Sittenfeld, chegará às livrarias daqui a três meses. Faz tempo que Jane Austen virou uma commodity literária. Não temos uma tradição de releituras nessa linha. Fernando Sabino e Domício Proença Filho já se incumbiram de dar voz a Capitu, Gustavo Bernardo corrigiu os rumos da Lucíola de José de Alencar, mas muitas outras experiências do gênero mereciam ser aqui tentadas. Quem se habilita a exumar um imaginário diário deixado pela Madalena de São Bernardo, a viçosense Bovary de Graciliano Ramos? Sairá em breve entre nós a tradução de um dos melhores exemplares desse gênero de ficção derivativa: Meursault, Contre-enquête, do argelino Kamel Daoud. Escrito em francês, já traduzido para o português de Portugal por ninguém menos que a escritora Inês Pedrosa, é uma espécie de suíte e, ao mesmo tempo, contraponto de O Estrangeiro, de Albert Camus. Desde a frase de abertura. “Minha mãe morreu hoje”, revela o pied noir (argelino de origem francesa) Arthur Meursault, na abertura de O Estrangeiro. “Mamãe ainda está viva”, replica o argelino Haroun, na abertura de sua investigação sobre o assassinato do irmão mais velho, no início dos anos 1940, quando ainda faltavam duas décadas para a Argélia libertar-se do domínio francês. Sob o sol escaldante de uma praia nos arredores de Argel, Meursault matou um árabe cujo nome Camus jamais revela aos leitores. Ele é apenas o “árabe”, um colonizado anônimo e indistinto. Daoud, jornalista famoso do Le Quotidien d’Oran e romancista de primeira viagem, o reinventou, deu-lhe uma identidade (Moussa), um irmão caçula (Haroun) e uma mãe igualmente desesperada para esclarecer as circunstâncias da morte de Moussa e descobrir onde o enterraram. Os dois romances se espelham (até nas iniciais de Meursault e Moussa), se complementam e se contradizem. Na releitura de Daoud, L’Étranger ganha outro título (L’Autre) e, em meio à investigação, irrompe outro assassinato, agora de um francês, Joseph, pelas mãos vingativas de um árabe não só nomeado, Haroun, como narrador da história, por sinal desfiada num tête-à-tête em Orã, a cidade de A Peste, em condições parecidas com as do papo confessional do protagonista de A Queda naquele bar de Amsterdã. Não é um romance sobre ou contra Camus, a quem Daoud admira como filósofo, a ponto de remoer algumas das ideias sobre o absurdo contidas em O Mito e o Sísifo, mas, acima de tudo, um ajuste de contas com a soberba do Camus romancista e uma crítica feroz à Argélia pós-libertação, livre dos franceses, mas entregue aos humores de nacionalistas tacanhos, corruptos e contaminados pelo fanatismo religioso. Um imã local chegou a propor uma fatwa contra Daoud, por causa do romance, que, por descabida, não obteve respaldo das autoridades competentes. Os argelinos têm fixação em Camus (pied noir quatrocentão) e nunca o perdoaram por sonegar uma identidade ao árabe morto por Meursault e por sua ambiguidade em relação à independência do país. Esse ressentimento é palpável até na versão em quadrinhos de O Estrangeiro, desenhada pelo argelino Jacques Ferrandez. No romance Camus Dans le Narguilé, um argelino acredita ser filho bastardo de Camus, equívoco de que o autor, Hamid Grine, se aproveita para aconselhar seus patrícios a desencanar do escritor francês. Em Aujourd’hui, Meursault Est Mort, Salah Guemriche faz o filho do árabe morto por Meursault dialogar com um francês, no dia da execução do assassino, num curioso exercício de metaficção e metaensaio que pode dar novos frutos se os argelinos não seguirem o conselho de Grine. Nenhum até agora teve um décimo da merecida repercussão internacional do livro de Daoud. Meursault morreu, mas seu fantasma ainda vaga por Argel.