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Luzes da cidade

Fake news é fake news

Falsa notícia já foi uma expressão não contaminada para simplesmente definir um não fato divulgado por engano ou por malícia

Por Lúcia Guimarães
Atualização:

Caros jornalistas,

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Vocês sabem que a nossa profissão se tornou mais perigosa nos último anos. Já perceberam que, quanto mais polarizado um país, maior o risco para o exercício de nosso ofício. Os dois brasileiros à frente das pesquisas na eleição presidencial fazem campanha com o bordão idêntico de ataques à liberdade de imprensa. Um, o suposto esquerdista, deu um tapa na cara de todos os cariocas sugerindo que a gangue de governadores criminosos está na prisão porque a imprensa mente. O outro, o fã do Ernesto Geisel, apesar de ter arrumado um economista para chamar de seu, avisa que, se eleito, vai punir empresas de mídia por ousar criticá-lo.

A BBC Brasil acaba de apurar a existência de contas falsas na rede social, à moda russa, um pequeno exército de mercenários digitais que já teriam sido usados para influenciar a campanha de 2014. O jogo é pesado e só vai piorar em 2018.

A este cenário desanimador juntou-se o homem com seu slogan da campanha de 2016, “fake news”. Fake news é todo o fato descoberto e exposto que desagrada ao homem. O jornalista Billy Bush, ouvido naquela gravação infame do programa Access Hollywood em que o então candidato se gabava de assalto sexual, reemergiu, depois de um ano de desterro. Ele foi sumariamente demitido por demonstrar cumplicidade na gravação feita em 2005. Num artigo no New York Times, o agora contrito Bush recordou que tinha uma relação amistosa com o bilionário que cobriu por décadas. Lembrou que um dia o criticou por mentir sobre a audiência de seu reality show O Aprendiz. Ouviu a resposta do atual presidente: “As pessoas simplesmente acreditam. É só você dizer e elas acreditam”.

Há um ano, a expressão fake news começou a cair no gosto de ditadores em toda parte. Líderes autoritários em pelo menos 15 países adotaram o slogan para lidar com questões domésticas. O genocida sírio Bashar Assad classificou um relatório da Anistia Internacional sobre 13 mil mortes nas suas prisões como fake news. O assassino Rodrigo Duterte, cujo reino de terror antidroga nas Filipinas já matou, no mínimo, 7 mil pessoas, se declarou vítima de fake news. A perseguição genocida à minoria rohingya em Mianmar foi apagada por um oficial do governo com a frase “Não existem rohingya. É fake news”.

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Então, caros colegas, querem frequentar esse tipo de companhia? Estou alarmada com a rápida normalização da expressão no Brasil e na mídia estrangeira. Num tempo em que editores eram mais numerosos, a expressão talvez fosse vetada em manuais de redação. Mas vivemos em outro ecossistema e boa parte do que é consumido como jornalismo é produzido por não jornalistas sem compromisso com as normas de antanho.

O diretor executivo do Comitê de Proteção a Jornalistas disse ao website Politico que a expressão propagada pelo atual presidente forneceu contexto a autocratas, fortifica o combate à liberdade de expressão. O historiador Timothy Snyder alertou no ano passado para a potencialização fascista da linguagem com a nossa cumplicidade. No manifesto Sobre a Tirania, já lançado no Brasil e cuja releitura periódica recomendo, Snyder recomendou, no capítulo Trate bem a língua: “Evite proferir as frases que todo mundo usa”.

Snyder lembra que o estreitamento do vocabulário é uma arma de controle totalitário. “Quando repetimos as mesmas palavras e frases que aparecem nos meios de comunicação diários, aceitamos a ausência de um quadro referencial maior”, escreveu o autor. Falsa notícia já foi uma expressão não contaminada para simplesmente definir um não fato divulgado por engano ou por malícia. Disseminar fake news entre nós, sob o crescente cacoete pernóstico de evitar o português quando há equivalente semântico, é repetir propaganda. É fake e não é news

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