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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Estado e Nação

A chegada da corte portuguesa ao Rio era uma revolução para o Reino, o Brasil e o Império

Atualização:

Há exatos 210 anos, a corte portuguesa desembarcava no Rio de Janeiro vinda de Salvador. Portugal já experimentou várias capitais ao longo da sua história: Guimarães, Coimbra, Lisboa e, em 1830, Angra do Heroísmo. Cada uma correspondeu a um momento específico da atribulada trajetória lusitana. A transferência para o Rio de Janeiro da cabeça do Estado português (D. Maria I e o regente, príncipe D. João) e de quase todo o aparato burocrático que enformava a máquina administrativa da metrópole era algo muito novo. A chegada de prováveis 15 mil pessoas ao acanhado cenário da colônia era uma revolução para o Reino, para o Brasil e para o Império como um todo. 

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Profissionais competentes dedicaram-se ao tema. Alguns poucos exemplos de livros: Império à Deriva (Patrick Wilcken); A Viagem Marítima da Família Real (Kenneth Light); A Corte no Exílio: Civilização e Poder no Brasil às Vésperas da Independência (Jurandir Malerba) e o estudo de Maria Odila Leite da Silva Dias com o título A Interiorização da Metrópole. O leitor também terá imenso prazer em ler a obra de Laurentino Gomes, 1808, primeira parte da sua trilogia sobre algumas datas que mudaram o Brasil do século 19 (1808, 1822 e 1889). Se o interesse for por temas correlatos à “inversão” de 1808, há muitas obras, em particular A Longa Viagem da Biblioteca dos Reis, de Lilia Moritz Schwarcz e outros autores.

Os efeitos para a colônia foram muito estudados. Houve concentração de recursos e de poder no Sudeste. A abertura dos portos (ainda em Salvador) e a elevação do Brasil a Reino Unido constituem, econômica e juridicamente, o fim do período colonial e de sua base mercantilista. A revogação do alvará que proibia as manufaturas e o surgimento da imprensa e do Jardim Botânico indicam um projeto sistemático. A Escola de Cirurgia da Bahia foi um marco para o País. O longo braço estimulante da Coroa atingiu Sorocaba (SP) com a instalação da Real Fábrica de Ferro São João do Ipanema. Também sempre que você entra no Banco do Brasil, está dialogando com uma ideia de 1808. 

Claro que há o lado menos progressista ou simpático. Parte do custo dos projetos da Corte veio de arrocho fiscal sobre o Nordeste. Em 1817, Pernambuco insurgiu-se contra a opressão do Rio de Janeiro. Do movimento rebelde brotou a atual bandeira do Estado, sempre candidata ao posto de mais bonita do Brasil. Para a América Portuguesa como um todo, a abertura dos portos e o tratado de 1810 atrelaram o comércio tupiniquim ao controle britânico. Deixávamos de ser colônia de Lisboa para virarmos feitoria de Londres. Por fim, ao lado da explosão fiscal e da dependência do comércio inglês, a intervenção de D. João no Prata deu continuidade a uma política antiga e reforçou um ponto de instabilidade que causaria a Guerra da Cisplatina (perdida pelo filho de D. João). 

O mais notável, para mim, no processo da “fuga” da família real não são os detalhes rocambolescos do episódio. Há muitos. Dona Maria agitada psiquicamente sendo a única que parecia querer lutar. A prataria abandonada no cais com o general Junot ao longe. D. João tentando casar o príncipe D. Pedro com uma princesa napoleônica para evitar a invasão francesa. A corte desembarcando com lenços na cabeça pela epidemia de piolhos a bordo e parte das brasileiras imitando o gesto supondo ser a moda mais sofisticada da Europa. Há centenas de episódios que sempre provocam algum riso no ensino médio e nos cursinhos. 

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O mais notável para mim está na obra Os Donos do Poder (Raymundo Faoro). O autor analisa séculos de choque entre o Estado (corpo político e burocrático) com a Nação (conjunto da sociedade). Em 1807, o Estado português e seus 15 mil áulicos abandonaram a Nação portuguesa para se salvar, levando quase todo o meio circulante de Portugal e deixando o país falido entregue aos invasores. Ao chegar ao Rio de Janeiro, o Estado português expulsou pessoas das casas (parte da Nação) para acomodar os integrantes dos organismos estatais. Ao retornar a Lisboa, D. João levou todos os recursos do Banco do Brasil, levando a instituição à sua primeira falência. Salva-se apenas o Estado, que morra a Nação! Faoro destaca o estamento burocrático, o corpo organizado de funcionários que se apropria do poder e dos recursos, desligando-se em parte do conceito mais amplo da Nação. 

A herança continuou. D. Pedro I colocou seus símbolos na bandeira do País. Prometeu jurar a Constituição SE ela fosse digna DELE e do Brasil. O objetivo do Estado parecia sempre ser... o Estado. Toda a história do Brasil poderia ser contada sobre esse choque: aqueles que se apropriam do Estado para seus interesses e a vontade mais ampla na Nação.  Os escândalos de corrupção mais recentes mostram também forças vivas da Nação entrincheiradas no coração do Estado, entendendo que ter lucro é lotear o poder estatal. Assim, tanto os mais tradicionais burocratas que vivem na Corte até os mais recentes agentes econômicos (professando fé liberal e de redução do Estado) focam no poder e se tornam cortesãos, seduzidos todos pelo brilho e pela eficácia arrecadadora da máquina administrativa. Duzentos e dez anos depois da chegada do Estado português, parte da Nação continua mesmerizada pelos lenços elegantes dos governantes. Mal sabem dos piolhos que a peça oculta. Boa semana para todos nós.

Opinião por Leandro Karnal
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