PUBLICIDADE

"Esplêndidos" dá tratamento despojado a Genet

Ao contrário de suas demais peças, enfáticas na visualidade, esta montagem chega a surpreender ao se apoiar mais no desempenho dos atores do que em recursos cênicos fáceis

Por Agencia Estado
Atualização:

Esplêndidos, a peça de Jean Genet encenada agora por um grupo carioca, é um pouco mais econômica na proliferação de imagens do que as peças extensas como O Balcão, Os Negros e Os Biombos. Com um universo dramático propositadamente restrito, semelhante à situação de clausura das peças escritas no início de sua carreira de dramaturgo (Alta Vigilância e As Criadas), Genet põe em cena bandidos reagindo sob a pressão do cerco policial. As informações sobre a ação exterior chegam à cena através de um meio "frio" de comunicação, a voz dos noticiários radiofônicos. Está ausente do palco o outro lado da sociedade, ou seja, o modo como a marginalidade é representada e compreendida pelo sistema. Nenhuma negociação é possível porque a refém - uma rica americana - foi assassinada. Resta ao bando ganhar tempo criando uma ficção de emergência. Nas imagens entrevistas pelas janelas do hotel podem, por um curto espaço de tempo, sugerir que a refém ainda estaria viva e a situação sob controle dos seqüestradores. Não há ilusões quanto à possibilidade de escapar. O espaço é único, o tempo concentrado pelo prazo determinado pela rendição, uma vez que a invasão pela polícia é iminente e a ação dramática é condensada pela polarização entre rendição pacífica ou resistência até a morte. A direção do espetáculo, feita por Daniel Herz, segue de perto essa estrutura de proporção clássica marcando as unidades de tempo, espaço e ação. Não há atrativos fora do texto e mesmo a idéia dos reflexos, sugestiva de espelhamentos na cenografia e nos figurinos, se contém nessa encenação dentro dos diálogos. Vale mais neste caso o jogo pelo poder dentro do grupo desencadeado pelo dilema da rendição. Os reflexos da imagem do bando e da reputação de cada membro, o modo como esses personagens são entrevistos pelo lado de fora, a representação dentro da representação (um dos bandidos deverá assumir a figura da mulher morta) são tratados de um modo quase austero para que a visualidade não se sobreponha ao impacto da argumentação. A imagem que o grupo faz e refaz de si mesmo durante a representação deve construir-se antes de mais nada por meio das palavras. Todos os outros recursos do espetáculo são secundários e parcimoniosos. A dramaturgia de Genet inspirou, entre nós e nos palcos de outros países, encenações enfáticas na visualidade e, de um modo geral, incisivas na formalização do conceito de aparência, fundamental tanto para o teatro quanto para o desempenho social. Chega a ser novidade um tratamento cênico despojado de uma de suas peças, apoiado mais sobre o desempenho dos atores do que sobre os outros recursos do espetáculo. De qualquer forma a deferência à narrativa, o cuidado em não reduzir o conflito a mero embate psicológico entre indivíduos são mais do que suficientes para evidenciar uma situação em que a necessidade de construir imagens é internalizada pelas personagens. Trata-se de um trabalho despojado sobre um relevo ambíguo e tortuoso. Nesta concepção há uma unidade física entre as personagens. Movem-se em bloco, todos os membros do grupo submetidos a um mesmo grau de tensão e uniformizados pelo figurino. Têm (excetuando-se o pragmático Scott) estampada no corpo uma atitude exibicionista, próxima da caricatura da valentia. O espetáculo torna-se assim um desenho nítido da intenção de aturar, de representar a bandidagem para um público ausente em cena, mas sempre visado pelo grupo. Não é preciso mais do que uso para significar a coincidência que a peça postula entre o ser e o parecer. Uma vez travestido, o chefe do bando assumirá a personalidade da vítima. Do mesmo modo, o policial, ao identificar-se com os seqüestradores, é capaz de adotar imediatamente os valores de outro estrato da sociedade. Só na traição, que é também renúncia à aparência, os personagens relaxam a postura, adquirem uma certa naturalidade corporal. São mecanismos enunciados com inteira clareza pelo modo como o espetáculo se organiza. Por breves momentos, especialmente nas intervenções lideradas pelo Policial (Ângelo Paes Leme) e por Pierrot (Rodrigo Penna), a exaltação emocional do elenco sai dos trilhos e se aproxima de uma atuação ao estilo naturalista. A linha do espetáculo, no entanto, é a de exibir em primeiro plano a representação da violência. Para o bando trata-se de um valor, um código de ética invertido a que se deve obedecer do mesmo modo que a outra sociedade, a dos homens bons, exige dos seus membros mansidão e suavidade. Quando os intérpretes se exaltam "de verdade", desequilibram por algum tempo a convenção da violência representada. É bem verdade que essa peça de Genet, como todas as outras, joga com a confusão entre o sentimento fingido e o sentimento real, mas, de alguma forma, essa confusão deve explicitar-se através da atuação. Esplêndidos é um trabalho sem efeitos fáceis, preciso na formalização das idéias do texto e com um elenco que, sem ser excepcional, tem a sabedoria de pôr em primeiro plano a atuação em grupo. Esplêndidos. Drama. De Jean Genet. Direção Daniel Herz. Duração: 1h30. Sexta e sábado, às 21h30; domingo, às 20h30. R$ 12,00.Centro Cultural São Paulo - Sala Jardel Filho. Rua Vergueiro, 1.000, tel. 3277-3611. Até 27/5.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.