Escritores e professores comentam o resultado da pesquisa

Estudo sobre personagem mais comum da literatura brasileira feita por alunos da Universidade de Brasília gera polêmica; confira comentários a respeito do assunto

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Por Redação
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Durante vários meses, a partir de 2003, a professora Regina Dalcastagnè, do Departamento de Teoria Literária e Literaturas da Universidade de Brasília, comandou uma equipe de alunos que, debruçada sobre diversos livros de autores nacionais, conseguiu moldar o personagem mais comum da literatura brasileira. A polêmica conclusão (já há autor torcendo o nariz) será tema de um debate que ocorre nesta quarta-feira, 6, às 10 horas, no Itaú Cultural, iniciando o projeto Encontros de Interrogação. Confira alguns comentários de professores e escritores. "A grande literatura escapa pelos dedos das análises quantitativas e não conta pontos", diz Silviano Santiago. "Um personagem relevante não depende do gênero (sexo), da posição social, da formação intelectual nem do fato de ser mais ou menos urbano ou saudável", afirma Milton Hatoum. Leia a íntegra dos comentários destes escritores que também são professores, assim como Walnice Nogueira Galvão e Alberto Mussa, além dos escritores João Gilberto Noll e Ricardo Lísias. Silviano Santiago Em arte e literatura, são sempre complicadas as análises que tiram conclusões a partir de dados quantitativos e da recorrência de determinado padrão. A lógica do pão pão queijo queijo é bom alimento para o comércio e indigesta para a grande literatura. Embora as análises que repousam na quantidade e na recorrência sejam complicadas, o pragmatismo de que são porta-voz pode ter alguma utilidade. A análise pela tendência majoritária aclara o peso e o valor do gosto mediano dos leitores. E o apelo à mediania é o truque de que se serve a crítica para justificar tanto a sobrevivência da literatura em país de maioria analfabeta, quanto a profissionalização do escritor em meio que lhe é hostil. O recado da até mesmo boa crítica é o seguinte: Sejamos pouco exigentes com os nossos produtos. Se não houver lugar para todos, não haverá lugar para a literatura. Sem o coelhinho na cartola da literatura, que é o elogio da mediania, a grande literatura e os bons escritores acabam sendo aqueles pobres coitados, pessimistas e ao mesmo tempo idealistas, que escapam aos conformes estabelecidos pela tendência majoritária. A grande literatura escapa pelos dedos das análises quantitativas e não conta pontos. Ela é dificilmente apreendida e apreciada pela mediania, a não ser postumamente e com a ajuda duma escola que não ensine tabus e defenda a tolerância, o que nem sempre é o nosso caso. Parte do espírito da vanguarda histórica e do experimentalismo nos nossos dias advém da crença na melhoria gradativa da qualidade do leitor propiciada por uma educação efetiva, segundo padrões atuais de gosto. Dois exemplos. A máxima de Oswald de Andrade: "A massa ainda comerá do biscoito fino que fabrico". Aliás, o trocadilho de Oswald dá nome a uma recente e audaciosa gravadora carioca, a Biscoito Fino. O outro exemplo é de Antonin Artaud. Perguntado como melhorar o público de teatro, ele respondeu: "O público? É preciso primeiro que o teatro seja inventado". Ou seja, não se faz literatura para um público pré-determinado, mas é a grande literatura que cria o leitor. Feito o esclarecimento, ainda que sumário, acrescente-se que o romancista brasileiro, salvo as honrosas exceções, trabalha num sistema de réplica, nos vários sentidos da palavra. Cria uma réplica, cópia, de si mesmo e do possível leitor que, aliás, é alguém semelhante a ele. Como disse Ionesco: Tomai um círculo, acariciai-o bem e ele se tornará vicioso. Acuado contra a parede do conformismo, o escritor é ainda responsável por outra réplica, ou seja, por um discurso de acusação contra todos os que são diferentes dele. Confirma-se o círculo vicioso: se todos fossem iguais a você, ou seja, a nós, que maravilha seria viver. Sair do padrão estabelecido pela réplica implica em assumir riscos junto ao editor, ao livreiro e ao leitor. Socorre-nos, ou não, Nelson Rodrigues: Toda unanimidade é burra. Milton Hatoum Um personagem relevante não depende do gênero (sexo), da posição social, da formação intelectual nem do fato de ser mais ou menos urbano ou saudável. Depende sobretudo de uma complexidade de que participam os conflitos internos, e a relação com outros personagens e com o ambiente social, cultural, familiar e político. Os bons romances se sustentam por meio de um ou vários personagens complexos. Há grandes personagens na nossa literatura. Penso na obra de Lima Barreto, Osman Lins, Cornélio Penna, Lúcio Cardoso, nas dezenas de personagens dos livros de Pedro Nava. Há tantos outros. De Brás Cubas a Macabéa, nenhum é convencional, muito menos Diadorim - homem/mulher - enraizado no sertão de Minas, ou o atormentado e furioso Luis da Silva (Angústia), que tampouco mora numa metrópole. Acho que os leitores e críticos são mais aparelhados para falar dos personagens dos meus romances. Tenho uma queda afetiva por alguns, que não se encaixam exatamente nos dados da pesquisa: Emilie, a matriarca, e Soraya Ângela, a criança surda-muda do Relato de Um Certo Oriente; Zana, Halim e Omar, do Dois Irmãos; Ranulfo, Alícia e Mundo do Cinzas do Norte. Personagens são seres que convivem durante anos com o narrador, mas quando o romance é publicado eles somem da vida do autor e reaparecem na imaginação do leitor. Walnice Nogueira Galvão A pesquisa, muito interessante, confirma o que a intuição da empiria já sugeria. Neste início de milênio, e acentuando uma tendência que procedia do século passado, a literatura brasileira migrou para a metrópole. Se durante meio século predominara o regionalismo e seu guru era Jorge Amado, hoje em dia quem dá as cartas é essa ficção metropolitana que segue os passos de Rubem Fonseca. Não admira que o protagonista se tenha estereotipado nesse branco de classe média heterossexual e de boa saúde, como a pesquisa revela. Pois, por coincidência, a literatura brasileira no mesmo período se padronizou e homogeneizou, ficando toda parecida e, para falar a verdade, um tanto uníssona. Alberto Mussa Em função do meu temperamento literário, minhas personagens representam justamente a exceção, no quadro apresentado pelos pesquisadores da UnB. Costumo dizer que gosto de distâncias: históricas, geográficas e étnicas. Para mim, é inconcebível pensar no tempo presente, se eu ainda não compreendi por que nossos antepassados tupinambá comiam os tupiniquim, se ainda não sei como eram as sociedades secretas do antigo reino do Cassanje, se ainda não conheço detalhes da batalha de Ajjubarrota. Há um sem número de vácuos como esses, que só podem ser preenchidos pela ficção. A pesquisa que a professora Regina Dalcastagnè coordena revela uma característica da literatura contemporânea que eu imagino não seja exclusivamente brasileira: a obsessão pela auto-referência. Sinto muita falta do fantástico, da aventura, dos mistérios cerebrais e inverossímeis. É claro que o simples fato de um escritor criar uma personagem masculina, branca, de classe média, escolarizada e heterossexual não indica baixa qualidade literária. Basta lembrar que a maioria das personagens de Machado de Assis se enquadra, mutatis mutandis, nesse perfil. O problema é mais profundo, a meu ver. Há na literatura brasileira de hoje não apenas uma insistência na mesma tipologia de personagens, mas principalmente uma repetição dos mesmos processos literários - particularmente os de certa linhagem norte-americana, velha de cinqüenta anos. Por isso, boa parte dos nossos escritores, em vez de chocar, acaba sendo conservadora e convencional. Confesso que é um desencanto pegar num livro brasileiro novo e lembrar de Charles Bukowski. João Gilberto Noll Nos meus livros eu tenho mostrado personagens que sofrem de uma insuficiência crônica. A vida, como está montada nas ruas, não lhes satisfaz. E a palavra "rua", aqui, não surge ociosa, não. O meu protagonista ocupa o seu dia desfamiliarizado, sem lar para onde voltar à noitinha. Geralmente desabrigado. E é, ainda por cima, eventualmente cidadão homoerótico? Sim, de fato, mas tem mais: é desmemoriado, esquecido da Histórica. E se refugia às vezes em banheiros públicos. Mas não, não crio documentários. Em tudo isso eu acho ser possível compor um quadro simbólico da desnutrição afetiva das sondagens urbanas. Sim, tenho muito orgulho de trabalhar com esses extratos sociais. Sem demagogia, é deles que consigo extrair a identidade mínima do protagonista que vara por toda a minha ficção. Um homem muitas vezes sem face. Sempre sem nome, pois lhe fugiu a cidadania. Claro que esses elementos não emprestam por si sós qualidade literária a livro nenhum. Mas que o sentimento da exclusão, num país como o Brasil, pode dar munição às narrativas de bons escritores, ah, isso não se pode negar. Basta pensar em Lima Barreto, João do Rio, no Graciliano de Angústia, em Clarice de A Hora da Estrela. Ricardo Lísias Eu achei a pesquisa muito interessante. Depois, não me surpreendo: a prosa brasileira tem a meu ver sérios problemas. De cara eu quero dizer uma coisa: na minha opinião ela concluiu algo sem querer: esse é o perfil do imaginário do que seria o consumidor de livros. Pois bem: a maior parte dos prosadores contemporâneos escreve tendo em mente esse perfil. Ah, sim, grande parte também escreve para ser lida por determinados órgãos da imprensa, que são lidos mais ou menos também por esse público. Enfim, quanto a mim: no meu primeiro romance, o narrador é um menino de rua. Em Duas Praças, é uma mulher (mas a crítica não decidiu se é uma moradora de rua ou uma pessoa da classe "baixíssima"). No terceiro livro, que acaba de sair, os narradores são diferentes. Continuando: ora, não é esse também o perfil dos autores? Classe média, escolarizada, branca etc etc etc? Pois sim, é esse. Então escrevem para si mesmo, num movimento de circulação muito restrita. De onde os problemas graves da nossa prosa contemporânea que em grande parte é voltada mesmo para o umbigo do autor e do leitor que é o próprio autor e seu círculo fechado.

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