Escritor José Luiz Passos conta sobre encontro com Suassuna

Vencedor do Prêmio Portugal Telecom, autor pernambucano leu Ariano Suassuna pela primeira vez para o vestibular de Física

PUBLICIDADE

Por José Luiz Passos
Atualização:

Quando penso em Ariano, imediatamente me volta à cabeça a enorme sensação de alegria que experimentei na primeira leitura do Auto da Compadecida. A peça era um dos textos para o vestibular. Estava no segundo ano e lia o livro numa poltrona, em casa, a poucas ruas de distância do autor. Venced; e me veio como uma pancada forte pelo que tinha de coisa vizinha: pela graça de encontrar naquilo que, para mim, era apenas leitura de vestibular a safadeza astuta de casos e tipos dali de perto, que se misturavam à imagem do autor, no bairro, atravessando a praça rumo a igreja, em seus famosos trajes de uma só cor. 

PUBLICIDADE

O raciocínio é falacioso, admito. Acontece que na época eu não gostava de literatura; gostava de Física. Parece simples, e parece pouco, mas aquela leitura teve um quê de libertação, tamanha a naturalidade com a qual minha paisagem afetiva passava ao palco ou para dentro das páginas dos livros. E nisso, é claro, eu me sentia em casa, bem mais em casa do que, aos 16, na companhia de Machado ou dos Andrades modernistas. Então, mesmo na opção que fiz por um primeiro vestibular para Física, Ariano foi, naquele ano, uma fonte de grande perturbação íntima. Ele teve (como ainda hoje tem) a força de um farol, inclusive naquilo que eu próprio, anos depois, nem sequer ousaria seguir. Não se segue um farol. Ele nos mostra como evitar certos caminhos e, às vezes, como evitar o próprio farol, porque barco e farol não se beijam. 

Ariano Suassuna foi sempre terno para com seus personagens e generoso para com os leitores. Anos depois, eu, agora universitário nas Ciências Sociais e dedicado ao Ariano romancista, faria uma visita ao autor. Quis saber dele o que era o regional e o armorial, e a filosofia do penetral, espirituosamente exposta em A Pedra do Reino. Não tenho como esconder o fato de que, quando chegou a vez de me arriscar na forma do romance, a ternura com a qual procuro me aproximar dos personagens é lição de Ariano, não de Machado nem de Graciliano Ramos. 

A reeducação do sonâmbulo Jurandir (de O Sonâmbulo Amador), por exemplo, isolado no topo de Belavista na companhia de seus guias espirituais (madame Góes e o enfermeiro Ramires), é desafio tirado humilde e amorosamente de A Pedra do Reino, o romance que finalmente me levava à casa do autor. Ali, num abraço de grande simpatia, Ariano me falou um pouco de seu livro preferido (que omito por hoje) e de como ele via, no frágil pacto entre o campo e a cidade, uma indiferença cruel de um pelo outro. Naquela tarde, Ariano Suassuna me acendia a vontade de um caminho que, agora (e hoje ainda mais), eu sigo nas saudades dele.

JOSÉ LUIZ PASSOS É ESCRITOR, AUTOR DE SONÂMBULO AMADOR E DE ROMANCE COM PESSOAS, E PROFESSOR DE LITERATURA NA UNIVERSIDADE DA CALIFÓRNIA

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.