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Coluna do escritor e arquiteto Milton Hatoum sobre literatura e cidades

Escrever em língua estrangeira

"O poeta mente se usa uma língua estrangeira.”

Por Milton Hatoum
Atualização:

Li essa frase de Paul Celan num livro de ensaio de Giorgio Agamben (Ideia da Prosa, tradução de João Barrento, editora Autêntica). O poeta romeno de língua alemã não acreditava no bilinguismo na poesia, pois “só na língua materna se pode dizer a verdade”. No entanto, escrever em língua estrangeira foi o desafio e a façanha de grandes poetas e romancistas.

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Fernando Pessoa escreveu os Poemas Ingleses (35 Sonnets), e também Antinuous e Epithalamium, que, segundo o próprio Pessoa, “são nitidamente o que se pode chamar obscenos”. Como se isso não bastasse, escreveu os Poemas Franceses (Trois Chansons Mortes).

Jorge Luis Borges, que parece ter lido o D. Quixote em inglês (antes mesmo de o ler em espanhol), escreveu Two English Poems, dois de seus mais belos poemas, que não são poucos.

Na ficção, logo nos vem à mente a obra do escritor russo Vladimir Nabokov, que escreveu boa parte de seus livros em inglês. O irlandês Samuel Beckett – autor de um ensaio sobre a obra de Marcel Proust – preferiu escrever alguns de seus romances e peças de teatro em francês. Na infância ou juventude, esses e outros escritores já eram bilíngues, e alguns renunciaram à língua materna para escrever romances, contos e memórias. Mas há exceções, e a mais notável talvez seja a obra do escritor polonês Joseph Conrad.

Antes de 1878, quando se mudou para a Inglaterra, o autor de Lord Jim e Coração das Trevas morou em Marselha e trabalhou na marinha mercante francesa. Mas em 1889, quando começou a escrever seu primeiro romance (A Loucura de Almayer, 1895), optou pela língua inglesa, ou foi “possuído por essa língua”, como ele mesmo afirmou.

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Em 1890, Conrad passou seis meses no Congo Belga, onde comandou o navio Roi des Belges, da Sociedade Anônima para o Comércio do Alto Congo. Voltou doente a Londres; doente e horrorizado com as atrocidades cometidas pelos militares e súditos do rei Leopoldo I, responsável por um dos maiores genocídios da história moderna.

De dezembro de 1898 a dezembro de 1899, quando estava escrevendo Coração das Trevas, enviou a editores e amigos várias cartas em que comentava a dificuldade de dar forma e sentido à sua experiência no Congo. Conrad duvidava e se questionava sobre o que escrevia, enumerava problemas que diziam respeito à linguagem e ao assunto que queria expressar. A relação entre a língua materna e a expressão da verdade – que Paul Celan mencionaria quase meio século depois – talvez fosse, de um modo oblíquo, uma das inquietações de Conrad, como se lê numa carta a um amigo: “Cada linha escrevo com dúvida... Pergunto a mim mesmo: Isso está certo? É verdade? Sinto essas coisas assim? Estou exprimindo todo o meu sentimento? Transpiro incerteza em cada palavra...”.

O resultado (ou a superação) de tantas dúvidas e incertezas é Coração das Trevas, um dos romances mais densos da literatura de língua inglesa, escrito por um expatriado polonês.

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