Em nome da queda de todos os muros

Convidado do ciclo Fronteiras do Pensamento, o filósofo franco-búlgaro Tzvetan Todorov diz que a convivência entre culturas não é difícil, porém alerta para o crescimento da xenofobia

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Por Ubiratan Brasil - O Estado de S.Paulo
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A perigosa separação do mundo por muros invisíveis - aqueles erguidos com tijolos religiosos e sociais - é uma das grandes preocupações do filósofo franco-búlgaro Tzvetan Todorov, que virá a São Paulo em setembro para o projeto Fronteiras do Pensamento.Crítico dos totalitarismos, ele vê com apreensão os conflitos nacionais, que ganharam maior importância depois do colapso do império soviético nos anos 1980. "A xenofobia substituiu o anticomunismo (na Europa ocidental) e o anti-imperialismo (na Europa oriental)", disse ele ao Sabático, em entrevista por e-mail, durante uma brecha das sessões de lançamento de seu livro Os Inimigos Íntimos da Democracia, que chegará ao Brasil em agosto, pela editora Companhia das Letras.Estamos às vésperas de uma eleição presidencial francesa. Quando se poderá esperar pelo surgimento de um liberalismo de esquerda na França?O termo "liberalismo" se presta a vários mal-entendidos, portanto é preciso de início saber do que se está falando... Nos Estados Unidos, um "liberal" é o que na Europa chamaríamos de social-democrata; na Europa, um liberal é o que em inglês se traduziria por conservative. E no Brasil? Eu costumo empregar esta palavra no sentido de "defesa das liberdades individuais". Mas em seguida, temos mais uma complicação, o liberalismo político, tal como se formou nos séculos 17 e 18, na Inglaterra e na França, era - se comparado ao presente - um tanto "de esquerda", porque se opunha ao poder absoluto, à opressão; hoje, na Europa, o termo "liberalismo" designa principalmente uma doutrina econômica considerada "de direita". Para evitar esta última confusão, é neste sentido que emprego termos como "neoliberalismo" ou mesmo "ultra liberalismo". Portanto, em resposta à sua pergunta: uma política "de esquerda" deve defender ao mesmo tempo a liberdade individual e o bem comum. Ela deve opor-se ao domínio exclusivo das doutrinas neoliberais, que negam a autonomia do político, sem derivar para o totalitarismo, que submeteu a economia à política; ela deve impor um contexto concebido no interesse da comunidade como um todo. Por enquanto, no plano econômico, a esquerda francesa continua prisioneira de conceitos neoliberais, e não sei quando poderá mudar. Uma das dificuldades a este respeito decorre do fato de que as economias europeias são mutuamente dependentes e isso evidentemente afeta também a economia francesa; seria preciso que todas evoluíssem na mesma direção, mas o acordo nesse sentido inexiste.Por que diversos escritores do nosso tempo aparentemente se perderam numa espécie de anti-humanismo e de antiliberalismo?Como eu entendo por "antiliberalismo" um quase sinônimo de "anti-humanismo", diria que é uma reação compreensível (embora lamentável) às grandes catástrofes que marcaram a história europeia no século 20 e ao colapso dos projetos utopistas de trazer o bem. Refiro-me a este respeito às guerras mundiais com a destruição de seres humanos e de bens materiais por elas provocada, ao fascismo e principalmente ao comunismo. A escolha humanista é menos sublime, menos heroica, não promete a salvação das nossas almas, nem o estabelecimento do paraíso na Terra, portanto, não convém aos espíritos amantes do absoluto. Os artistas e os intelectuais pertencem frequentemente a esta última categoria.A coexistência das culturas é difícil na sociedade de hoje. Até quando isto persistirá?A coexistência das culturas não é difícil, na realidade. Para nos convencermos disto basta lembrar que a cultura é o código comum de um grupo humano - o que significa não apenas de uma nação, mas também de uma região, de um bairro, de um sexo, de uma faixa etária, de uma profissão, de um ambiente social, e assim por diante. No decorrer do dia, mudamos várias vezes de código cultural em função das pessoas que encontramos. É por isso que cada um de nós é portador de várias culturas, e esta pluralidade não representa nenhum problema sério para nós. Entretanto, esses diferentes grupos existentes no seio de uma sociedade rivalizam entre si, competem e, às vezes, entram em conflito. Os conflitos ideológicos se reduziram na Europa depois do colapso do império soviético; portanto, os conflitos nacionais adquiriram uma importância maior. A xenofobia substituiu o anticomunismo (na Europa ocidental) e o anti-imperialismo (na Europa oriental). Não ganhamos nada com a mudança; a distinção entre "nós" e "os outros" corresponde a um nível muito elementar da inteligência.Como o senhor vê o medo do Islã na nossa sociedade?Só posso falar das reações na Europa. O medo está provavelmente relacionado ao fato de que, em sua maior parte, os violentos atos terroristas dos últimos anos foram perpetrados em nome do Islã, como os atentados de Londres, de Madri, de Istambul ou, na França, de Paris e, recentemente, de Montauban e de Toulouse. Esses atos são extremamente minoritários, de um indivíduo em um milhão, mas como são supostamente uma expressão do Islã, a confusão é inevitável. Deste modo, os que execram o Islã como um todo tornam-se os aliados dos terroristas, que gostariam de se apresentar como a autêntica encarnação do Islã. Não é nada disso, esses terroristas são indivíduos revoltados que, em geral, têm um conhecimento muito superficial da religião muçulmana.O senhor fala da negação da humanidade no livro O Medo dos Bárbaros (Editora Vozes). Será algo estrutural?A barbárie consiste em negar a humanidade plena dos outros, dos que não se parecem conosco. Observamos suas manifestações em todas as épocas, em todas as partes do globo, portanto é uma possibilidade oferecida à espécie humana. Mas, evidentemente, não é uma necessidade - é inclusive o sentido profundo da palavra "civilização": a capacidade de reconhecer a plena humanidade dos outros. Todo ser humano pode alcançar a civilização.Estará a humanidade condenada a erguer muros simbólicos?O próprio conceito de poder político implica a ideia de fronteira: este poder diz respeito a uma comunidade e não às comunidades vizinhas, portanto, é preciso traçar separações entre elas. Mas será que essas fronteiras devem ser muros? Ou, como na minha infância, "cortinas de ferro"? Sua presença me parece sempre constituir um mau sinal, a prova de que é preciso esconder-se atrás do muro de uma fortaleza ou trancar os outros atrás do muro, como numa prisão, como os muros erguidos recentemente entre os Estados Unidos e o México ou entre Israel e a Palestina. Espero assistir à sua derrubada, como assisti à do Muro de Berlim.A visita ao País e ameaça que espreita o mundo ocidentalO ciclo de palestras Fronteiras do Pensamento começa em São Paulo no dia 23 com o economista indiano ganhador do Nobel Amartya Sen, que abrirá ainda a programação do evento em Porto Alegre, no dia 25. Ele será o primeiro de uma lista de oito convidados de áreas diversas, como o cineasta e artista multimídia inglês Peter Greenaway, que vem em maio, e o pesquisador americano Michael Shermer, esperado para agosto (veja a programação em www.fronteiras.com).Tzvetan Todorov fará sua palestra no dia 3 de setembro em Porto Alegre e no dia 5 em São Paulo, logo após à chegada ao País de Os Inimigos Íntimos da Democracia, no qual alerta que "a autêntica ameaça do mundo ocidental está em uma série de tendências crescentes em nosso seio". Residente na França desde 1963, quando tinha 24 anos, ele segue a linha de outra importante obra, O Medo dos Bárbaros, ao tratar do que considera ameaças que estão à espreita e que são mais perigosas que o terrorismo islâmico, o extremismo religioso ou regimes ditatoriais - são as estruturas autoritárias gestadas nas entranhas do próprio sistema político ocidental.Para Todorov, o risco de uma regressão global a modos de agir e pensar típicos do totalitarismo é a consequência mais alarmante das vertiginosas transformações socioeconômicas das últimas décadas.

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