PUBLICIDADE

Em livro, José Maria Mayrink narra histórias de solidão

Jornalista revisita personagens da metrópole que conheceu nos anos 1980

Por Jotabê Medeiros
Atualização:

Repórter com mais de 50 anos de trabalho temos poucos. Repórter que estudou teologia, latim e filosofia temos uns três ou quatro. Repórter com todas essas credenciais e que ainda cobriu o golpe militar no Chile, a eleição de dois papas e a beatificação de outros dois só existe um: José Maria Mayrink.

PUBLICIDADE

Autor de outros livros, entre eles Filhos do Divórcio e Anjos de Barro (esse último com um prefácio memorável do Henfil), Mayrink tem agora editado, pela Geração Editorial, um volume-reportagem fundado sobre uma coleção de textos que marcaram sua carreira: Solidão (192 págs, R$ 29.90). A série de reportagens sobre o tema Solidão foi produzida em dezembro de 1982, em locais que iam de bancos de praça a prisões e, segundo escreve a escritora C.L. Alves na orelha do livro, permanece "assustadoramente atual".

Os personagens são anônimos ou misteriosos, mas todos exalam um sentimento de exaustão social. "Dona Wanda tinha posição e riqueza na Polônia, antes do regime comunista. No Brasil desde 1953, perdeu tudo: marido, fazenda, bens. Agora, aos 75 anos de idade, vive numa pequena comunidade de pessoas idosas que ninguém chamaria de asilo. Ela preferiu viver ali para não enfrentar os problemas de uma casa grande, cujas escadas suas tonturas não suportam mais".

Muitas histórias praticamente foram atrás do repórter, em vez do contrário. "Depois de publicar anúncio no jornal O Estado de S.Paulo, de quinta-feira a domingo, em setembro de 1982, Lúcia Ribeiro, a ‘mineira solitária’ de Belo Horizonte, recebeu 370 cartas de pessoas que queriam ajudá-la ou confessavam ter passado pela mesma experiência de solidão".

Há muitos personagens incidentais, cujos destinos apenas cruzam o ofício do autor. Neuza, travesti que dança nas boates de São Paulo, é um deles. "Na verdade, tudo nele também é falso – o nome, a peruca, o vestido de mulher, o sorriso nos lábios e até a voz, que é uma gravação de Ângela Maria".

O arraigado catolicismo do jornalista não o impele a fazer análises morais de seus entrevistados, mas quando o faz, o faz com delicadeza, cavalheirismo. O paralelo que traça entre a vida na clausura de um convento e a dos 1,2 mil condenados na Penitenciária do Estado, por exemplo, é um caso de ternura, quase compaixão. "A solidão que pesa e sufoca na prisão do Carandiru é alegria e libertação no claustro da avenida Jabaquara. Mas, imposta como castigo ou abraçada livremente como opção de vida, ela é uma sensação que muitas vezes dói, como acontece com os padres: solitários por vocação, eles chegam à velhice sem enhuma família e frequentemente sem amigos".

E Mayrink diz que não teve medo da fronteira mais pedregosa para quem trata um tema como esse: a pieguice. "Tratei de tudo simplesmente ouvindo as pessoas. Na verdade, eu não estou ali como protagonista da solidão. Me perguntaram muito isso: ‘Você é um solitário?’. E eu respondi: não, era uma reportagem. Quando escrevi sobre o divórcio, me perguntaram se eu era divorciado. Quando escrevi Anjos de Barro, me perguntaram se eu era deficiente. Como se o repórter tivesse de fazer parte das histórias que conta, ser um personagem", brincou.

Publicidade

Por sinal, um daqueles personagens das histórias de Mayrink, um senhor cego com hanseníase, morreu há um mês, aos 87 anos. "É por isso que a solidão aparece de muitas maneiras: uma manifestação de dor, de tristeza, mas também uma coisa querida, buscada, gostosa. E que se mede de muitas maneiras diferentes também", disse o autor.

Também não tenta evitar coisas que hoje poderiam soar politicamente incorretas – ou incômodas para uma certa parcela de seus leitores. "Os cegos sentem solidão, e é no meio das pessoas que enxergam. Em outras palavras, ‘cego só vive bem com outros cegos’, como diz o carioca Antônio Passos Soares, 68 anos de idade, que não vê desde criança". Já Carol Soares escreveu carta ao centenário jornal declarando sua homossexualidade, que foi publicada. "O meu homossexualismo não é uma opção. E nem poderia ser. É apenas a minha dimensão do amor", escreveu.

Trinta anos depois da reportagem que virou livro, o autor examina sua própria saga. E vê que nada mudou muito – escorando-se na estatística, descobre estarrecido que meio milhão de pessoas vivem sozinhas na grande metrópole. "Os olhares perdidos nos finais de feriado são os mesmos da praça da Sé em 1980, senão mais tristes; os solitários do passado, que mandavam cartas para as revistas e buscavam agências de relacionamento para encontrar companhia, hoje se amontoam nas redes sociais, onde todo mundo está, mas ao mesmo tempo não se vê ninguém de verdade", escreve C.L. Alves.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.