PUBLICIDADE

EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|Duas bobagens

Atualização:

Acabou ou ainda não acabou a lereia em torno da verdadeira identidade de Elena Ferrante? Mamma mia! Virou um folhetim literário com mais de uma década de duração e um desfecho decepcionante. Se o jornalista Claudio Gatti tivesse confirmado a suspeita de que a verdadeira identidade da romancista italiana é o escritor napolitano Domenico Startone, hipótese faz tempo bancada pelo jornal L’Unità, aí sim haveria um mínimo de surpresa, pois é suspeita quase unânime de que os livros de Ferrante só poderiam ter sido escritos por uma mulher. Surpresa maior seria se a própria escritora que se assina Elena Ferrante abdicasse do irredutível anonimato e tornasse pública a sua real persona, fosse ela uma sessentona chamada, digamos, Francesca Pelligrina, também nascida em Nápoles e filha de uma costureira, ou a tradutora Anita Raja, filha de uma sobrevivente do Holocausto e signora Domenico Startone, dedurada por Gatti na semana passada. Raja desprezou as pistas divulgadas pelo jornalista, e continuou na dela.  Francesca Pelligrina? Foi um nome inventado, não por mim mas por Dayna Tortorici, da revista n+1, a quem devemos o melhor estudo crítico da obra de Ferrante. Se alguém a interpela: “Você sabe o verdadeiro nome da Elena Ferrante, não sabe?”, ela retruca, com a maior cara de pau: “Quem não sabe? É Francesca Pelligrina”. Outros nomes falsos ela já inventou: Lidia Neri, Pia Ciccione, Domenica Augello, com a mesma intenção: tirar um sarro do importuno curioso e matar a conversa no nascedouro.  Que importância tem saber quem é Elena Ferrante se todo mundo sabe quem ela é?  Ferrante é uma grande escritora com quase uma dezena de livros que irão perdurar mais do que a maioria dos que lemos e ainda iremos ler. Personagem adicional de si mesma, já concedeu várias entrevistas intermediadas por seu agente/editor e reuniu o que desejava que soubéssemos a seu respeito e sobre o que pensa sobre uma infinidade de coisas, inclusive suas preferências literárias (no topo, Madame Bovary) num volume intitulado Frantumaglia (Miscelânea ou Fragmentos), editado na Itália em 2003 e recém-traduzido para o inglês.  Por que estragar um mistério e reduzir a romancista a uma imagem específica? Por que “acabar com a brincadeira?”, cobrou o editorialista da London Review of Books, que se assina, sintomaticamente, “Anonymous”, e talvez a imaginasse como uma senhora de classe média, quiçá gordota, não com os contornos e a biografia, sem dúvida mais atraente, de Anita Raja. Na minha imaginação, Elena (desculpem a intimidade) era uma mistura de Elsa Morante, de resto, sua musa inspiradora, com a atriz Valentina Cortese. Era e continuará sendo.  O que mudou com a entregação de Gatti? Novos insights na leitura da obra de Ferrante? Até agora, nada. Será que conhecer detalhes da vida privada da escritora afetaria a intensidade emocional de suas histórias?  Claro que nos sentimos muito próximos ao escritor quando o lemos, mais ainda de autores que escrevem na primeira pessoa, como Ferrante, e criam personagens com a superlativa empatia de Lila, Lenu, Olga, Delia. Isso, porém, não nos concede o direito de irmos além de nossas tamancas. O escritor escreve, o leitor lê; o que, no fundo, importa é a linguagem, as frases, a qualidade intrínseca de seu trabalho. Ao blindar sua privacidade, Ferrante nos libertou de uma leitura ancilar, dependente de referências autobiográficas, só na aparência enriquecedoras.  Diante de um universo ficcional tão rico e plenamente contextualizado como o de Ferrante, as intimidades da autora nada têm a acrescentar, são fuxicos irrelevantes à fruição e à importância da obra, uma concessão lamentável à cultura obcecada pela imagem, ao voyeurismo, à frivolidade, à fofoca jornalística, ao rebaixamento da literatura ao nível do culto à celebridade - a tudo, enfim, que Ferrante pretendeu evitar ao adotar o pseudonimato. Por sua confessa e benigna ojeriza ao mundanismo literário e suas obrigações (posar para fotos, frequentar talk shows, dar autógrafos, responder a enquetes, receber prêmios), não merecia o paparazzitismo a que a submeteram. Gatti foi, no mínimo, deselegante e desrespeitoso; vasculhou até as declarações dela ao imposto de renda, como se ela fosse uma Berlusconi ou uma integrante da Camorra. Sua denúncia só faria sentido se, por trás de Ferrante, se ocultasse um político cuja atuação tivesse contribuído para perpetuar a pobreza na região onde os personagens da autora nasceram e se criaram, a Nápoles mais pobre e esquecida. Impossível imaginar Ferrante contratando uma atriz para representá-la na entrega do prêmio Strega (que quase ganhou) ou convocar um parente para conversar com a imprensa, dois gaiatos estratagemas adotados pelos reclusos Thomas Pynchon (para receber o National Book Award de 1974) e Romain Gary (para dar entrevistas). Limitou-se à adoção de um ‘nom de plume’, como fizeram Mary Ann Evans (que virou George Eliot) e Ethel Florence (que virou Henry Handel Richardson), até de forma mais drástica, já que também “mudaram” de sexo, mas sem se esconder da curiosidade alheia. O escritor angolano José Eduardo Agualusa acha que criar um segredo não ajudou Ferrante a permanecer secreta, mas provavelmente contribuiu para chamar a atenção para a obra da escritora e ajudar a vendê-la. Concordo, torcendo para que Anita Raja não dê o braço a torcer, mantendo vivo o secretismo e ajudando a vender ainda mais os livros da única e verdadeira Elena Ferrante que interessa.  * A segunda bobagem da semana foi a reação dos literatos ao Nobel de Bob Dylan. Um escarcéu careta recendendo a corporativismo. Se dependesse de mim, Philip Roth só não levaria o galardão deste ano porque já o teria levado anos atrás, mas seria uma escolha óbvia. Nenhum Nobel de Literatura é justo ou incontestável, mas escolher um músico e poeta do quilate de Dylan significou, no meu modesto entender, um avanço, uma transgressão. A Academia Sueca contestou a preconceituosa cisão poeta-letrista que, apesar de desmoralizada por Cole Porter, Lorenz Hart, Johnny Mercer, Jacques Prévert e o nosso Vinicius de Moraes, persiste. 

Opinião por Sergio Augusto
Tudo Sobre
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.