Direitos sambísticos

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Por Nei Lopes
Atualização:

Nunca antes no Brasil se falou tanto em direito autoral. E, aqui, quando se fala nisso, não se pensa em livro, fotos, arquitetura, softwares, nada disso! O que vem logo à cabeça é música; e autor dizendo que não ganha o que acha que merece.Vem de longe esta conversa. Desde o início da presença no país das empresas "impressoras de música", denominação que definia, então, o que hoje se conhece como editoras musicais. Teoricamente, uma editora (de livro ou de música) é o elemento viabilizador da produção: o autor cria e a editora leva sua criação até o público consumidor. Antes do disco, do rádio e da televisão, era assim, efetivamente, que acontecia o consumo da criação musical: o autor criava uma obra e o público tinha acesso a ela através de partituras, impressas e vendidas pela editora. Essas partituras, então, ganhavam vida, no âmbito doméstico (toda residência de classe remediada ou alta tinha um piano) ou em locais públicos. Com o advento do disco, a democratização dos aparelhos de reprodução sonora e seu aprimoramento, tudo foi mudando. As grandes editoras foram deixando de ser meras publicadoras e vendedoras de partituras impressas, para lucrarem à custa do recebimento de direitos - que lhes eram (e ainda são) cedidos por alguns compositores contra "adiantamentos" pecuniários os quais, na verdade, são empréstimos a juros. E aí elas passaram a atuar não só como procuradoras e intermediárias desses autores mas também como legítimas titulares dos direitos que os autores lhes cediam (e ainda cedem) através de contratos. Nessa prática, bastante lucrativa, se encerra uma das grandes questões do direito autoral hoje em todo o mundo. Inclusive, é claro, no mundo do samba.Mas saiamos um pouquinho da esfera do direito para a roda da batucada, tentando entender como o samba se encaixa dentro do amplo mercado da música popular atualmente consumida no Brasil.Segundo os relatórios produzidos pelo atual sistema autoral musical brasileiro (o qual, criado por lei em 1973, não é em sua essência ruim nem obsoleto como dizem e cujos problemas são, em tese, bastante semelhantes aos que aqui ocorrem em outras estruturas, inclusive públicas); segundo esses relatórios, o samba é hoje um dos gêneros ou estilos de música menos aquinhoados. Tomando por base o ano de 2010, no ranking de arrecadação de compositores, o mais bem colocado do segmento samba ocupa apenas o 170º lugar, seguido por outro na 182ª posição e outro mais na 208ª. Na frente deles, vêm principalmente compositores do amplo espectro da música pop, que hoje (quer queiram, quer não) engloba também os estilos rotulados como sertanejo, gospel e forró. Para entender esse descompasso, é preciso saber que a infraestrutura mercadológica de nossa música popular se assenta em grandes conglomerados de mídia, que controlam ou procuram controlar toda a cadeia de produção, da criação ao consumo. Nessa cadeia incluem-se desde gravadoras, editoras musicais e provedores de internet até redes nacionais de TV aberta e por assinatura; emissoras de rádio, jornais, revistas etc. E aí, como resultante dessas gigantescas estruturas, vamos encontrar, por exemplo, o segmento sertanejo atrelado a rodeios, moda e estilo de vida country etc.; o gospel vendendo bíblias, bênçãos e promessas de bem-aventurança; o axé promovendo micaretas, venda de abadás e consumo de bebidas energéticas; o pop-rock vendendo contemporaneidade e sintonia com a mundialização etc., etc., etc. E o povo do samba, lá embaixo, quase sempre visto apenas como consumidor de carnaval, feijoada e cerveja, numa visão amplamente desmentida pelo Relatório Anual das Desigualdades Raciais no Brasil (2009 - 2010), publicado pelo Instituto de Economia da UFRJ.Considerando que a maioria do povo do samba é afrodescendente, vemos no relatório que essa parcela da população brasileira está aumentando sua participação nas universidades, nas profissões liberais, nas diretorias de grandes empresas, nos partidos políticos, no comércio e na indústria. E conquistando nível superior de escolaridade, carro importado, casa própria em condomínio fechado e todos os bens de consumo oferecidos pela sociedade moderna. Isso quer dizer que o povo do samba também compra e vende; além de conhecer seus direitos de cidadania. Como os autorais, por exemplo.

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