Desfiando um rosário de perdas e danos afetivos

Obra que encerra a trilogia do desencanto mistura fluxo de lembranças ao refazer uma história pessoal e do mundo

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Por RONALDO CAGIANO
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Desde sua estreia com o volume de minicontos Grogotó (Ed. Topbooks, 2000), a prosa de Evandro Affonso Ferreira concentrava-se primordialmente na linguagem. Até a novela Catrâmbias (Ed. 34, 2006), foram cinco obras em que o autor se esmerou numa dicção peculiar, abstraindo-se de enredos para criar uma espécie de dicionário pessoal, ao resgatar termos moribundos ou expressões que caíram em desuso, conferindo ao seu texto uma atmosfera impactante, o que provocou estranhamento no leitor e na crítica, a ponto de Millôr Fernandes reconhecê-lo como "o vivificador das palavras".A partir de Minha Mãe se Matou Sem Dizer Adeus (Record, 2010), seguido de O Mendigo Que Sabia de Cor os adágios de Erasmo de Rotterdam (Record, 2012), a preocupação com a morte das palavras deu lugar a uma atenção com a morte do ser. Nesse novo percurso, os dilemas humanos ganharam mais espaço, sem abandonar a disposição de manter uma prosa original, em que os recursos metalinguísticos, o flerte com a filosofia, o diálogo com autores e obras clássicas e o trânsito pela mitologia continuam a sustentar uma escrita elaborada, marcada pela erudição, permeada de sutilezas metafóricas e refinado humor crítico. Do mergulho nas profundezas do idioma catapulta-se para o insondável da alma e da natureza, dando voz a experiências devastadoras e situações-limite de seus personagens.Em Os Piores Dias de Minha Vida Foram Todos (Record, 2014), completa-se a trilogia do desencanto, em que o autor utiliza como recurso o monólogo e a construção de protagonistas sem nome, mas que incorporam a face dura de experiências existenciais. São angústias que desencadeiam uma avalanche catártica, tendo a memória nostálgica, a passagem do tempo, a solidão e os mistérios da vida e da morte como leitmotiv.Em seu novo livro se aguça a percepção niilista do autor sobre a vida e a insularidade do homem contemporâneo, a reboque do sofrimento de uma personagem que não encontra saída diante da morte iminente. Em um minúsculo quarto de hospital, uma mulher dá vida ao seu tormento, enquanto sua memória deambula pelas ruas da cidade tangenciando situações, esbarrando com tipos diversos e entreouvindo conversas que vão compondo seu espectro de dilaceramento e desilusão. Nesse espaço geográfico se instaura uma densa e tensa cartografia psicológica e entre a realidade exterior e o delírio, vai desfiando um rosário de inquietações, refletindo sobre o seu passado e a agonia diante da Iniludível. Ao longo desse périplo se reporta a um amigo professor, como ressonância de seus questionamentos e a fantasia ganha contornos exponenciais ao invocar o mito grego de Antígona, filha de Édipo, que optou por enterrar-se viva a ver o corpo do irmão largado aos abutres, após morrer por uma disputa pelo trono de Tebas. A narradora angustiada, misturando fluxo de lembranças e uma consciência onírica, percorre a história pessoal e do mundo para escandir a sua ruína, como se fosse um Sísifo em eterna luta contra o absurdo da morte ou um Prometeu acorrentado diante da imutável banalidade da vida. E ao utilizar de forma intermitente a expressão Vim, vi, perdi, o apelo deixa de ser mera repetição para transformar-se num ricochete que reforça a tensão retórica desse desespero levado ao paroxismo, ao mesmo tempo em que é uma analogia ao excelente título do livro.Vencedor do Prêmio Jabuti e finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, Evandro Affonso Ferreira vem, com uma arquitetura engenhosa, riqueza semântica e prosa poética, erguendo uma escrita sem parâmetros em nossas letras. Em seus livros reverberam as perdas e os danos afetivos que nos movem e comovem desde sempre, expressando a dimensão melancólica e trágica da nossa condição. RONALDO CAGIANO É AUTOR DE DICIONÁRIO DE PEQUENAS SOLIDÕES (LÍNGUA GERAL) E O SOL NAS FERIDAS (DOBRA)OS PIORES DIAS DE MINHA VIDA FORAM TODOSAutor: Evandro Affonso FerreiraEditora: Record (128 págs., R$ 30)

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