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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|Desconstrução

Peça se centra no guru Paul De Man, antes de sua execração pública, claro; bem antes

Atualização:

Nada a ver com a Lava Jato e o nosso sistema político. A desconstrução em pauta é uma peça teatral que lamento não poder ver, delegando esse prazer a Lúcia Guimarães, que, no entanto, terá de correr para comprar os ingressos, pois Deconstruction, do ex-jornalista Jonathan Leaf (no palco do Grand Hall, no Baixo East Side de Nova York), encerra sua curta temporada no próximo dia 25. 

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Teatro de ideias é comigo mesmo. E se um de seus personagens é Mary McCarthy (1912-1989), só a distância para me impedir de assistir ao espetáculo. Mary (prefiro chamá-la assim e não pelo sobrenome, como recomenda qualquer manual de jornalismo, porque McCarthy me evoca aquele sacripanta do Wisconsin que deu origem ao macarthismo) anda muito mais em evidência como personagem, atualmente, do que como escritora e ensaísta. Melhor assim, desde que respeitem e valorizem aqueles predicados que tornaram a “dark lady” das letras americanas um modelo de intelectual “do contra” (não temos uma tradução adequada para “contrarian”), como até agora aconteceu.

Seu histórico arranca-rabo com Lillian Hellman inspirou outra peça, Imaginary Friends, de Nora Ephron, encenada 15 anos atrás; recentemente a vimos como a melhor amiga da filósofa Hannah Arendt, naquele vigoroso docudrama dirigido por Margareth von Trotta. Agora, esta peça de Leaf, dirigida por Peter Dobbins e com apenas 75 minutos de duração, na qual a autora de O Grupo (encarnada pela mulher do diretor, Fleur Alys Dobbins) divide o palco com outras duas falecidas sumidades. 

Uma delas, a principal, é o guru do desconstrucionismo em língua inglesa Paul De Man. Antes de sua execração pública, claro; bem antes. O terceiro vértice do triângulo, só parcialmente amoroso, não é Jacques Derrida, criador do movimento e parceiro de De Man na Blitzkrieg desconstrucionista no mundo acadêmico americano. Nem poderia sê-lo. De Man e Derrida juntaram suas ideias ali por volta de 1966, quase 20 anos depois dos eventos dramatizados na peça. 

Quando, não faz muito tempo, preparava um perfil de Mary McCarthy para uma revista, Leaf ouviu de um entrevistado que ela tivera um caso com De Man, enquanto se entendiava com Bowden Broadwater, seu terceiro marido. Mary era fogo: casou quatro vezes; o segundo da fila foi o crítico Edmund Wilson (romperam de vez quando ele, no meio de uma discussão sobre quem levaria o lixo lá fora, deu-lhe uns tabefes). Sedutora, consta que corneou todos os seus consortes, menos, talvez, o último, o diplomata James West. 

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O mexerico não parecia descabido. A mais recente biografia do desconstrucionista, The Double Life of Paul De Man, de Evelyn Barish, publicada há exatos três anos, jogou lenha na fogueira, com um adendo cuja veracidade ninguém, que eu saiba, até agora comprovou: Mary teria sido engravidada pelo amante. 

De Man era um sujeito bonitão e conquistador: um Don Juan inteligentíssimo e erudito, nascido na Antuérpia e sete anos mais jovem que Mary. Tragédias familiares marcaram-lhe a infância e adolescência. Refugiou-se na América depois da guerra e transformou-se no mais cultuado professor de literatura e filosofia da Universidade de Yale, de onde disseminou sua crítica radical à interpretação tradicional dos textos literários e filosóficos na cultura ocidental, prisioneira, a seu ver, de conceitos filológicos, psicológicos, sociológicos e políticos mais que inapropriados, intrusivos e empobrecedores. 

Suas aulas e palestras produziram uma geração de ferrenhos seguidores, os “manians”, também apóstolos da hostilidade do mestre à verdade como um valor absoluto. O diretor de teatro Peter Brook foi seu aluno; Henry Kissinger aprendeu francês com ele, em Harvard. Não eram manians, mas na certa ficaram igualmente estupefatos quando uma série de denúncias, originadas na Bélgica, expuseram-lhe o passado de simpatizante nazista, na Bruxelas ocupada pelos alemães. Até nesse detalhe revelou-se um fiel discípulo de Heidegger. 

Sorte dele ter morrido em 1983, cinco anos antes da escandalosa revelação; a que outras se seguiram: De Man praticara fraudes, levara negócios da família à falência, traíra a mulher e lhe passara um cheque sem fundos, mentira inclusive sobre seu currículo acadêmico. Um crítico brilhante mas patologicamente desonesto, foi esta a reputação que ficou. Sua desqualificação da verdade ultrapassou os limites da mera convicção filosófica. 

Se bem entendi, no início da peça, que só conheço pela leitura de uma resenha e uma entrevista do autor, De Man (interpretado por Jed Peterson, que em 2012 foi Ezra Pound no curta Left Bank Bookseller, sobre a livraria Shakespeare & Company, Joyce e Sylvia Beach) ainda sobrevive como livreiro na Doubleday da Grande Estação Central de Manhattan. A Doubleday foi seu ponto de partida para integrar-se à coterie intelectual nova-iorquina. Com uma carta de recomendação de Georges Bataille, conheceu Dwight Macdonald, que o introduziu à turma da Partisan Review. Foi no apartamento de Macdonald que Mary McCarthy apertou-lhe a mão pela primeira vez. Enrabichada por ele (achou-o “cosmopolita e chique”), arrumou-lhe emprego como professor de francês no Bard College. 

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A princípio caloroso e terno, De Man revela aos poucos o seu Mr. Hyde. Quem mais o confronta, com desafios filosóficos centrados em Heidegger e seu antissemitismo, é a terceira sumidade em cena, Hannah Arendt. Ex-aluna e amante de Heidegger, ninguém mais bem equipada para desconstruir a hipocrisia do desconstrucionista. Ainda não era a maior amiga de Mary, mas a solidariedade feminina não exige intimidade para estender a mão a quem precisa livrar-se de um misto de Casanova e Svengali, que fez da mentira o seu principal nutriente filosófico. 

Opinião por Sérgio Augusto
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