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Decepção na releitura de Django, do japonês Takashi Miike

Filme não se sustenta, com seu clima de paródia constante, mistura de tiroteios, trash e artes marciais

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Se a grande ênfase no cinema americano já havia se mostrado um erro deste ano, agora começam a aparecer os problemas de outra obsessão da atual curadoria de Veneza - o cinema oriental. E que outra explicação haveria, senão uma afinidade eletiva desmedida, para a presença deste I, do japonês Takashi Miike, em competição?    Trailer de 'Sukiyaki Western Django'    Certo, haveria explicações adicionais várias. A primeira sendo que Sukiyaki é uma "releitura" (hum...) do personagem Django, criado por Sergio Corbucci em 1966, uma das estrelas da retrospectiva dos spaghetti western que está acontecendo no Lido. Por que não colocar então o filme japonês na mesma programação e desafogar a competitiva? Competição que, vale lembrar, não inclui um único representante latino-americano, pois toda a produção do continente foi julgada insuficiente pelos exigentes selecionadores europeus. No entanto, um Sukiyaki desses da vida passa. E passa por quê? Talvez porque tenha Quentin Tarantino num pequeno papel e Quentin seja persona grata em Veneza. Conta o fato de também haver capital americano na produção?   O fato é que o filme, enquanto tal, não se sustenta, com seu clima de paródia constante, mistura de tiroteios, trash e artes marciais. Vale lembrar que o spaghetti western era já uma paródia do gênero clássico norte-americano. O "sukiyaki western" é, portanto, paródia da paródia, quer dizer, de um pós-modernismo elevado ao cubo. Certamente encontrará fãs no Brasil quando aí for lançado pela Sony Pictures. No fundo, é "cinema de menino", como diz Caetano Veloso. Aqui, salvo os aplausos de meia dúzia de gatos pingados, foi recebido friamente. Mas, até onde se pôde ler, a imprensa deixou passar em brancas nuvens essa presença absurda, como outras. Aliás, mais chapa-branca em relação ao festival do que a imprensa italiana, impossível.   Em outro patamar, está En la Ciudad de Sylvia, do espanhol José Luis Guerin, nascido em Barcelona em 1960. O filme todo se passa na França, em Estrasburgo, e é falado em francês. Mas "falado" é modo de dizer porque os diálogos são econômicos, muito raros neste filme de visual apurado. Há um personagem, estudante de arte, que deambula pela cidade. Observando as pessoas, em especial se estas pertencem ao gênero feminino. Está em busca de uma certa Sylvia, que ele conheceu anos atrás e nunca reencontrou. Procura por uma mulher determinada, através de outras. E o filme se resume a essa busca sem fim, que é, todos sabemos, a própria busca do desejo. O que fica é a construção dos espaços e dos planos de Guerin, que transforma esse percurso visual do rapaz em algo notável. Não é filme para grande público. Assim mesmo foi bem acolhido.   Mestres   Da mesma forma foi bem recebido - com aplausos e reverência - o novo trabalho de Manoel de Oliveira, Cristóvão Colombo, o Enigma, exibido fora de concurso na seção Maestri Veneziani. A tese do filme é que Colombo teria sido português, nascido na cidade de Cuba, no Alentejo. Por esse motivo, deu o nome de sua terra de nascimento à maior ilha do Caribe. Oliveira trata do assunto de maneira ficcional, através do personagem de um rapaz que emigra para os Estados Unidos, lá se torna médico e mantém, como hobby, sua pesquisa sobre as grandes navegações portuguesas. O próprio Oliveira o interpreta quando velho.   No filme, que também não é para todos os gostos (só para os mais refinados), alguns elementos básicos de Oliveira: a nostalgia, uma concepção intelectual do ser europeu e português, em especial. Algo a notar: em apenas 70 minutos, o cineasta consegue tratar de um tema muito vasto. E sem nenhuma pressa. Usa planos longos, demorados mesmo, conseguindo a síntese do todo por meio de poderosas elipses. Esse domínio do tempo cinematográfico é bem condizente com um artista de 99 anos e ainda em plena atividade. Uma força da natureza.   Outro grande velho - este infelizmente há pouco desaparecido, Michelangelo Antonioni - recebeu homenagem no Lido. Na cerimônia, a viúva, Enrica Fico Antonioni, disse que todo o legado intelectual do marido, do qual ela é curadora, será disponibilizado livremente para pesquisadores de todo o mundo. "Dar liberdade à sua obra é a única homenagem justa a um espírito livre", disse ela, em bom exemplo para herdeiros parasitas, que, por ganância, acabam inviabilizando a circulação da obra dos parentes ilustres.   Depois da entrega de um troféu a Enrica, foram exibidos três documentários em curta-metragem do maestro: Nettezza Urbana (Limpeza Urbana), Vertigine e Lo Sguardo de Michelangelo. Os dois primeiros dos anos 40, mostrando o cinesta em formação, mas com estilo já bem reconhecível. O terceiro é da fase final da vida do diretor, 2004, e se vale de uma ambigüidade: o encontro de dois Michelangelos, na visita que Antonioni faz à Igreja de San Pietro in Vincoli, em Roma, para observar a famosa estátua de Moisés, esculpida por seu xará por encomenda do papa Julio II. A câmera que percorre a obra-prima em mármore representa o olho do cineasta. Um Michelangelo contemplando outro. Buonarroti visto por Antonioni. Sublime.

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