De Kindle à canga

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Por Matthew Shirts
Atualização:

Del Mar, Califórnia Em nosso primeiro momento a sós no ensolarado Estado da Califórnia, após dez dias de separação, minha mulher Luli mostrou seu Kindle. Ela passara os dez dias aqui nos Estados Unidos com o caçula, Samuel, antes da minha chegada. Estava eu com saudades. Mostrar o Kindle, para quem desconhece o ato, não chega a ser uma demonstração de grande intimidade. O Kindle é um leitor de livros digitais. Se você, leitor querido, diferente da minha mulher, leu a minha crônica de um mês atrás, aqui mesmo no Caderno 2, sabe que há uma ironia grande no gesto da Luli. Naquela crônica contei a história do Shakespeare e de como meu saudoso pai, Garry, dois anos atrás, tentou me fazer trocar um volume lindo, em papel-bíblia, com capa dura, da Oxford, das obras completas do maior escritor da história pela versão digital dos mesmos textos. Ele sempre foi entusiasmado pelo potencial de novas tecnologias e, nos últimos anos da vida, amante do Kindle. A crônica só tratou disso. Contei tão somente essa história. O Shakespeare em papel, que defendi com valentia e argumentos clássicos, era um presente de aniversário para a própria Luli. Agora, em pouco mais de uma semana nos EUA, ela já debandara para o outro lado da "Força", como diria Luke Skywalker. Falou-me, entusiasmada, dos dicionários do Kindle, da livraria digital, até da capinha - de couro - que custara quase o preço da engenhoca. Não vai comprar mais nenhum livro em papel durante nossas viagens, jurou: "Pra quê?". É uma grande notícia para os carregadores de mala do mundo todo e dos taxistas de Guarulhos em particular.Os brasileiros que me acompanham nessa viagem não estão encantados com todas as tecnologias americanas, devo frisar. Tanto minha filha Maria, como a Luli, não conseguem entender, por exemplo, a ausência da canga entre as ferramentas "high tech" utilizadas para enfrentar a praia aqui na Califórnia. Os americanos são farofeiros natos, "está no DNA", segundo já observaram todos, inclusive Lucas, meu primogênito: "Isto é que é farofa!", exclamou ele. Trazem cadeiras dobráveis high tech, minichurrasqueiras com pequenos botijões de gás, e "coolers" fabricados de materiais desenvolvidos pela Nasa para a praia. Sem falar das pranchas, roupas de neoprene e tendas dignas do Lawrence da Arábia, se este fosse do século 21. Mas, estranhamente, frisam minha mulher e minha filha, as americanas desconhecem a utilidade, a beleza e o prazer da canga. Demorei para perceber a importância da canga na cultura brasileira. Notara já quanto as mulheres falam delas e como se entusiasmam sempre que aparece o vendedor de cangas e de outros acessórios com aquela loja ambulante na praia. De alguns tempos para cá, vinha pensando na possibilidade de abordar o assunto em crônica, mas deixara o tema para o verão no Brasil. O processo foi acelerado por essa nossa viagem. Maria esqueceu de trazer a canga para a Califórnia. Luli, mais previdente, trouxe uma da Bahia, com motivos de fitas do Nosso Senhor do Bonfim, nada menos. Mas as duas são obrigadas a compartilhar a peça. Quando uma vai à praia sozinha, a outra fica sem canga. Ir à praia sem canga, para a brasileira, não tem graça, descobri. Toalha, explicam, não é a mesma coisa. Garantem-me que não encontram canga para comprar na Califórnia. Mostrei-lhes uma moça com o que me parecia uma canga amarrada na cintura, mas chegaram à conclusão, sem verificação empírica, de que se tratava de uma brasileira de origem.A situação chegou a tal ponto que Luli me perguntou se poderia utilizar a bandeira americana adquirida para a festa de independência do dia 4 de julho como canga. Fiquei em dúvida. Seria "pop", sem dúvida, e ficaria legal ao lado das fitas do Bonfim. Mas algum instinto meu, de gringo, disse que era melhor evitar possíveis conflitos culturais. Tanto a canga, como a bandeira dos Estados Unidos, são símbolos fortes demais para serem misturados debaixo do sol na areia. Continuemos, portanto, com Kindle, mas sem canga.

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