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Dany Laferrière fala sobre sua aversão ao nacionalismo e lança livro na Flip

O haitiano participa da mesa 'O Avesso da Pátria' em Paraty e lança 'Como Fazer Amor com Um Negro Sem se Cansar'

Por Antonio Gonçalves Filho - O Estado de S. Paulo
Atualização:

PARATY - Com 27 anos de atraso, o livro Como Fazer Amor com Um Negro Sem se Cansar, do haitiano Dany Laferrière, chega ao Brasil no momento em que seu autor participa da 10.ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Laferrière concedeu entrevista ao Sabático lembrando que, ao escrever o livro, não tinha só em mente autores ligados à geração beat, sejam eles os protagonistas ou coadjuvantes do movimento literário liderado por Jack Kerouac, cujo mais famoso título, On The Road, foi filmado pelo cineasta brasileiro Walter Salles. A retomada dos ideais da beat generation mais de meio século após sua eclosão pode ser entendida como uma resposta à padronização cultural ditada pela nova ordem do mundo globalizado, que trocou a liberdade pela segurança. Laferrière é o oposto dessa cultura: ainda jovem, lutou contra a ditadura de Jean-Claude Duvalier, mais conhecido como Baby Doc. O pai já vivia no exílio e o filho não teve escolha além de seguir seus passos, em 1976, quando um amigo jornalista, Gaston Raymond, foi assassinado pelos Tontons Macoute, grupo paramilitar mantido pelo regime de Duvalier.

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Morando em Montreal, Laferrière veio a Flip para conversar, neste sábado, 7, às 17h15, com a escritora cubana Zoe Valdés justamente sobre o que significa ser nacionalista (palavra que odeia) num mundo que se pretende sem fronteiras. Na terça-feira, dia 10, já encerrada a Flip, ele discute um tema ainda mais interessante, A Literatura e a Reinvenção do Eu, às 20 h, no Teatro Eva Herz (Livraria Cultura da Avenida Paulista).

Reinventar o eu é com ele mesmo. Após deixar o Haiti, Laferrière trabalhou como faxineiro de aeroporto e em uma fábrica de tapetes, onde vivia cortando as mãos e os braços, até que os colegas o ajudaram a arrumar um lugar melhor e seguro para que pudesse escrever seu primeiro romance. Foi assim que surgiu Como Fazer Amor com Um Negro Sem se Cansar. Transformado por Jacques Benoit no polêmico filme (homônimo) que provocou certo barulho em seu lançamento americano, o livro, apesar de ter como principal personagem um aspirante a escritor, não é autobiográfico. No entanto, muitas das opiniões sobre relações inter-raciais do protagonista são divididas pelo autor. No livro, o escritor fictício divide com seu amigo preguiçoso um minúsculo apartamento em Montreal. Velho é como o chama seu amigo Buba, que passa os dias dormindo, lendo o Corão ou ouvindo jazz. O objeto mais precioso de sua propriedade é uma máquina de escrever Remington, que ele comprou de segunda mão e julga ter pertencido a um ícone da literatura negra (teria sido Chester Himes?).

O livro é repleto de citações a autores que Laferrière ama: além de Himes, Baldwin, Henry Miller, Bukowski. A lista dos favoritos é imensa e inclui Mishima, Joyce Carol Oates, William Styron e, claro, Salinger. Qual máquina de escrever usada ele compraria? Provavelmente aquela que pertenceu a Bukowski. "Ele e Borges são meus autores preferidos."

Jornalista no Haiti, Leferrière escrevia para um suplemento cultural quando teve de deixar seu país, na Olimpíada de 1976. Fixando-se inicialmente nos EUA, onde nasceu a primeira das suas três filhas, ele tentou sobreviver lá por 12 anos como escritor, mas acabou voltando ao Canadá em 2002.

Apesar de ter escrito seu primeiro livro sobre as aventuras sexuais de um negro com loiras de apelidos engraçados, Laferrière garante que jamais se sentiu parte de uma minoria. Nem gosta que alguém o chame de escritor haitiano. "Sou escritor e sou haitiano, mas isso não significa que tenha de defender uma causa." No Canadá, diz, a cor da pele não importa muito, embora seu narrador discorde dele. No começo dos anos 1980, época da ação de Como Fazer Amor..., o narrador diz que a "grande era negra" já passou. Ao negro, conclui, só resta se reinventar, "ejacular petróleo". Se você quer um resumo da guerra nuclear, continua o protagonista, "ponha um negro e uma branca na mesma cama". O ódio no ato sexual "é mais eficaz do que o amor".

É certo que, por aquela época, Laferrière já havia lido James Baldwin, o que pode ser atestado por algumas das ideias expressas no romance inaugural do haitiano, que traz ecos de Da Próxima Vez, o Fogo, manifesto de afirmação racial escrito em 1963 pelo autor de Giovanni (livro gay de amores inter-raciais). "Baldwin é preciso, assertivo, mas também lírico", diz Laferrière, definindo o americano como um produto de sua época e "um tanto obcecado por essa questão de raça". Hoje, conclui, "o mundo não é tão regulado por conflitos raciais". Não que eles inexistam. "Só que essa não é a preocupação central do século 21".

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Já o recrudescimento de movimentos nacionalistas preocupa Laferrière. "A vida não é uma questão de nacionalismo, mas de respeito ao próximo." Foi isso que motivou o escritor a produzir L’Odeur du Café, registro autobiográfico proustiano em que a madeleine de Laferrière é o café preparado pela avó do escritor. Esse récit d’enfance traz lembranças descontínuas e incertas que são ao mesmo tempo reveladoras da formação de um sentimento nacionalista posteriormente abjurado pelo haitiano, que diz ter nascido como escritor em Montreal. Isso não significa que ele defenda a francofonia ou a cultura canadenses. "Sou contra fronteiras e a francofonia representa mais uma, entre muitas."

Como autor migrante, Laferrière escreveu outro relato autobiográfico pouco convencional, Pays Sans Chapeau, romance em que ele cruza o rio Styx, ou seja, o rio dos mortos, para narrar como é a vida do outro lado. É uma parábola sobre a travessia que empreendeu até chegar aos EUA. Reafirma também a total ausência de nostalgia do mundo que conheceu no Haiti, exceto pelas boas lembranças da infância, como a imagem de sua avó na varanda da casa ensolarada e o cheiro do café. Quanto ao misticismo haitiano, ele não deixou marcas profundas em Laferrière. "Minha mitologia é a liberdade, e a literatura, nesse sentido, foi generosa por me oferecer uma oportunidade de viver uma outra vida além da real."

Borges, segundo Laferrière, é outro exemplo de alguém que se reinventou por meio da literatura, assim como Bukowski. "Ambos têm um estilo conciso e um gosto particular pelas metáforas." A análise do procedimento retórico do argentino em comparação com a sua literatura e a de Bukowski pode parecer chocante, mas o haitiano insiste que, como Borges, também tomou vidas emprestadas para contar sua história. "Tenho uma tia que vive me dizendo que eu não escrevo as coisas tais quais elas acontecem, mas é assim que as vejo e é isso o que importa, afinal, em literatura."

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O que interessa, diz ele, é o poder subversivo da retórica. "Ao escrever Como Fazer Amor..., pensei muito em Montaigne, em como poderia mudar a proposição ‘eu te amo’ por ‘eu te desejo’, pois você pode detestar alguém, mas desejá-lo com igual intensidade." Laferrière pensava e em loiras que sentiam atração por homens negros. "Invertendo a lógica do racismo, mudando a equação da força percebi que era possível escrever uma sátira sobre as diferenças sociais e o abismo entre as classes sem fazer um discurso político." Seu lado ensaístico, adianta, só virá no livro que escreve (Notas para Um Jovem Escritor), conselhos que, aos 59 anos, resolveu dar aos aspirantes a literatos.

 

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