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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Da utilidade dos advogados (Parte I)

Os cursos de Direito pipocaram pelo país, que tem a maior quantidade de cursos jurídicos no mundo

Atualização:

Um médico tem privilégios. Desde que o jovem anuncia sua inclinação à profissão, os familiares exultam e comemoram. A aprovação no curso de medicina é celebrada como uma vitória de toda a estirpe. 

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Além da prova de fogo do vestibular, os médicos possuem outro apanágio único, que atingiu o xamã de uma aldeia remota no Neolítico até hoje. Era visível no médico-arquiteto Imhotep da primeira pirâmide do Egito. O dom esteve presente em Hipócrates de Cós e em sábios medievais, como Maimônides e Avicena. Que brilho seria esse? Quem lida com a saúde humana não precisa nunca explicar sua utilidade: ela é evidente por si mesma. A função médica é sempre tida como nobre e útil.

O prestígio dos esculápios é tamanho que muitos ignoram quão penosa é a formação do profissional da área. Seus cérebro e corpo serão testados no limite do possível, em noites insones e plantões intermináveis. Há um calvário entre a decisão do jovem e o dia do registro do CRM, que pode continuar mesmo depois disso. 

O perfeito antípoda da decisão pela ciência médica ocorre com o jovem que, feliz, solta durante o almoço dominical: “Vou fazer Filosofia!” Desponta o luto e um crepúsculo melancólico dos sonhos avoengos. “Onde foi que nós erramos?”, apela o pai para a desconsolada mãe. A função do filósofo é quase tão antiga quanto a do médico e é extraordinariamente importante. Mas, como uma feira livre, é importante desde que não seja na nossa rua. Em outra crônica serei advogado da escolha pela área de Kant. Por enquanto, abandonemos a família desconsolada na sua dor.  Entre as duas escolhas existe outra (entre dezenas): o Direito. Quem proclama querer ser advogado não recebe a mesma negativa dos candidatos ao saber filosófico, tampouco a mesma epifania dos futuros cirurgiões. Por quê? Vejamos. 

A carreira do Direito é antiga no Brasil. Na colônia, rebentos masculinos das elites latifundiárias e mineradoras iam para Coimbra e voltavam com diploma, latinório e prestígio. Exerciam pouco a função, mas lustravam o brasão escravocrata com as memórias da universidade lusitana. Desde 1827, por força de lei, e, na prática, desde o ano seguinte, os cursos de Direito do Largo de São Francisco e o de Olinda-Recife nacionalizaram a possibilidade. Logo, as elites agrárias e as crescentes elites urbanas foram bafejadas pelo Código de Justiniano e a hermenêutica da Constituição de 1824. Surgem estudantes pobres, como sabemos pela ação benemérita da Marquesa de Santos. 

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Os cursos de Direito, mais baratos do que os de Medicina, pipocaram pelo país incessantemente. Ouvi de um membro da OAB que somos o país com a maior quantidade de cursos jurídicos no mundo. O dado é muito revelador. 

Há uma enorme vantagem. O formado em ciências jurídicas tem diante de si um leque vasto: pode advogar com escritório próprio, ser contratado por empresas, lecionar, seguir carreira diplomática, tornar-se delegado, vestir a toga da magistratura, tornar-se político (como Rui Barbosa) ou escritor (como Lygia Fagundes Telles) e infinitas outras possibilidades. Poucas carreiras abrem tantos campos como a do Direito. O canudo do Direito é um chafariz que emana uma água ampla e fluida. 

Há uma curiosidade: não dominou no Brasil o tom pejorativo que existe na alta cultura europeia sobre advogados. Thomas Morus excluiu a categoria das funções desejáveis na sua ilha da Utopia. Shakespeare escreveu diatribes contra os protegidos de Santo Ivo. A pior de todas é quando Dick, um carniceiro da peça Henrique VI – parte 2, diz que: “A primeira coisa a se fazer é matar todos os advogados”. Em outra passagem do bardo, Hamlet dialoga com a caveira de um jurista e diz coisas abomináveis sobre o defunto, como se querelantes jurídicos fossem sempre desonestos. 

Por quê? O primeiro motivo parece ser uma injusta contaminação função-indivíduo: precisamos de um profissional do Direito para um divórcio, inventário decorrente de morte, uma briga, uma disputa ou na agonia do cárcere. O advogado acaba contaminado como o coveiro: sua função é útil, porém ligada ao desconforto ou à briga. “See you in court”, frase tão americana, não é dita após experiência afetiva.

Há um ponto a desenvolver: os advogados defendem seus clientes. Desde a Grécia, quando os filósofos da escola sofista exerciam funções em pleitos legais, a fama se enraizou. Os sofistas não partilhavam da crença de uma Verdade com letra maiúscula, defendiam aquele que os contratasse. Para o cliente, usavam toda a retórica e verve possíveis. Assim, a própria palavra sofista foi sendo revestida de maledicência, desde Sócrates-Platão até hoje. 

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Ideia interessante: o êxito de um bom profissional do Direito é a defesa dos direitos do seu cliente. Para esse fim, ele deve usar de todos os recursos legais, de todas as interpretações possíveis, esgotar as medidas cabíveis para que seu cliente atinja seu objetivo, como o médico o faz com o doente. O contraditório é a base da justiça e o advogado deve explorá-lo a favor de uma pessoa, empresa ou causa. Talvez a questão esteja na confusão entre o que se considera justo ou correto (a Verdade) e aquilo que é lei e, portanto, passível de interpretação (uma verdade). Voltaremos a isso. Até lá, bom domingo! 

Opinião por Leandro Karnal
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