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Coluna semanal do antropólogo Roberto DaMatta com reflexões sobre o Brasil

Opinião|Crise e transitoriedade

Não se deve lidar com problemas importantes como um ignorante, dizia Anton Chekhov. Vale lembrar dele neste instante (transitório, mas interminável) em que o Brasil não pode deixar de enxergar a sua mais profunda má-fé, a sua mais clara indisponibilidade para o bom senso e a sua mais abjeta vontade de poder.

Atualização:

A onipresença desses maus sentimentos confundem e fazem duvidar de nossa sabedoria, pois, sem nenhuma narrativa como guia, estamos confinados a uma santa ignorância. A ignorância de nós mesmos como uma nação de governantes sem caráter, a consciência trágica de um país que substituiu a fé pela mentira da propaganda política. Onde foram parar os políticos honestos e a nossa crença em nós mesmos?

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De fato, a novidade desses tenebrosos tempos de crise, escândalos e roubalheiras em cascata é o desnudamento de nossa infinita crença de que “no final, tudo vai dar certo”. Que Deus é brasileiro e assim nos idealizamos como gente malandra, mas honesta; pobre, mas limpa; poderosa, mas repleta de generosa e doce alegria carnavalesca. Negra na pele, mas branca na alma – eis a suprema admissão de um povo preconceituoso e tão autocomplacente que jamais precisou de rotinas segregacionistas. Para nós, basta(va) o preconceito bem internalizado que, maternal e carinhosamente, engendra o roubo federalizado feito – como estampam os jornais – “dentro da lei!” e no âmbito de um conscientemente desonesto “eu não sabia...”.

O instantâneo que captura décimos de segundo dessa dimensão infinita e insondável, a qual chamamos de “tempo”, revela algo que deveria ter um início, um meio e um fim, mas que a crise tende a perpetuar, recusando o tempo. E se o tempo feito de uma história que seria feita por nós não resolve, caímos no poço sem fundo de nós mesmos, donde o cheiro de podre que chega vem do contato imerecido, para a maioria sem riqueza e poder, com o denso cinismo dos poderosos.

Eis uma crise que, irmanada aos avanços do individualismo, da transparência e de uma enorme reação à igualdade como o valor central de uma democracia, tende a permanecer irresolvida. O que, como uma dor de cabeça, seria um evento excepcional tem raízes nas ambiguidades da lei, que protege os superiores, dos poderes que se suicidam digladiando-se e do caráter dos partidos e dos políticos, que estão no palco como confundindo verdade com mentira. E assim vamos ficando cada vez mais longe da redenção e a cada hora mais certos de pertencer a um país viciado em incestuosamente trair a si mesmo.

No Brasil de hoje, o transitório que, para Freud, era precioso justamente porque passava denunciando a finitude, o luto e a perda de algo que era nosso e do qual éramos obrigados a dizer adeus à força, banhados nas lágrimas da nossa melancolia, parece não ter fim.

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O que motiva Freud, em 1915, em plena selvageria da Primeira Guerra Mundial a revelar o transitório como um fato sociopsicológico, foi a reação negativa de seus companheiros de passeio num belo dia de verão. O jovem poeta que o acompanhava (dizem que era Rilke) e o taciturno amigo que fazia parte da excursão (afirmam que era Andreas-Salomé) lamentaram esse instante de gozo de uma rara beleza, porque a paisagem iria dissipar-se como tudo o mais que é belo e desperta a consciência do inexcedível. Freud aponta o lado positivo do transitório e fala da sua efemeridade como algo que obriga a aceitar o fato de que nada é permanente. Não sendo deuses, vivemos num mundo de instantes e vislumbres, pois a desgraça que eventualmente nos atinge não estava prevista no passado dos “momentos mágicos” – como dizia um certo Lula –, os quais são hoje substituídos por vergonhas, escárnios e insultos à nossa inteligência.

Mas Freud não esqueceu o fato de que o transitório pode ser negativo e, mesmo na tragédia, permitir a quem sofre uma desgraça, ingratidão ou calúnia, esquecê-las e, em alguns casos, lembrar delas com indiferença ou por meio do que chamamos de “saudade”. A dor da perda parece infinita, mas, transformada em saudade, ela passa a ser um evento passível de ser lembrado porque encontrou um lugar no nosso coração.

Thomas Mann vai além e faz um “louvor à transitoriedade”. Para ele o transitório é a “alma do ser”, pois é quem engendra o tempo. Onde não há transitoriedade, princípio e fim, nascimento e morte, não há tempo; e a falta do tempo é o nada estagnado, tão bom e ruim como o desinteresse absoluto.

No caso desse nosso Brasil, barricado por uma crise sem o vislumbre da transitoriedade, como seria normal em todas as crises, pergunta-se: o que fazer quando o transitório não passa e suspende a passagem do tempo?

Opinião por Roberto DaMatta
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