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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Crianças, cachorros e deuses

Está diminuindo nossa crença no humano? Não sei. Só sinto que tenho saudades do Drop

Atualização:

Na Idade Média, não havia crianças e não existia o amor materno como o entendemos hoje. A ideia é tradicional para os historiadores. Costuma encontrar alguma reação em públicos de outras áreas. “Não havia crianças? Nasciam adultos”? Sim, adultos “inaptos” que deveriam ser treinados para que se tornassem produtivos e responsáveis. Criança está ligada ao verbo latino para aumentar, produzir, erguer. Infantil é literalmente quem não sabe falar. A criança era definida pela negativa do adulto. É difícil pensar sobre outros modos de significação quando estamos diluídos no nosso.

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Um processo de séculos, como a invenção da criança, perde objetividade. Vamos para uma transformação mais recente: a relação dos humanos com animais domésticos de companhia. 

Nasci no interior, em uma casa de pátio amplo. Cães e gatos eram frequentes. Aprendi a gostar deles desde muito cedo e ainda tenho saudades de animais que morreram há mais de 30 anos, como o cocker spaniel Drop ou a gata Lucrécia (sem raça definida).

Nosso amor era compartilhado pela família e, mesmo assim, cães e gatos comiam, quase sempre, restos das refeições familiares. O veterinário existia, mas, mesmo entre bem situadas famílias de classe média do interior, era um apelo extraordinário em caso grave. Animais não eram levados regularmente a consultas. 

Tudo isso foi sendo transformado em ambientes urbanos brasileiros. A ideia de alimentação deu um passo quando se popularizou o hábito de misturar uma polenta com alguma carne de segunda ou miúdos de frango. Quem fazia isso já indicava um pertencimento social acima da média. 

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Vi surgir o mercado de rações. Propagandas ressaltavam como era saudável e como era prático comprá-las. Os ramos se especializavam: havia para gatos, para cães e para filhotes em geral. Embalagens começaram a destacar virtudes: pelos sedosos, disposição, saúde dental. Brotaram biscoitos caninos, bifinhos, ossos artificiais, brinquedos e casinhas cada vez mais sofisticadas.  Canis e gatis brotavam junto a pet shops. Assisti também às primeiras propagandas de passeadores, hotéis de fim de semana para animais e, bem mais recentemente, acupuntura, ofurô e hidroginástica para nossos amados quadrúpedes. 

Parece, por simples observação empírica sem método científico, que há mais raças e maior variedade pelas ruas hoje. Minha infância tinha muitos sem raça definida ao lado de um minoritário pastor-alemão, pequinês, fox paulistinha e um punhado escasso de outros.

Os nomes? Meu avô tinha um cão denominado Piloto que o acompanhava em caçadas e pescarias. Nós tivemos uma Lady: por influência do desenho A Dama e o Vagabundo. A já citada Lucrécia era uma exceção ligada ao meu gosto por História (de Lucrécia Bórgia). A norma eram nomes como Rex para cães e Mimi para gatos. Hoje, nome e sobrenome, quase sempre sofisticados, substituem os simples e diretos do passado. 

Um cão dormindo do lado de fora de casa, amarrado por um fio de arame ou corrente, é algo menos comum hoje, ainda que existam muitos animais abandonados. 

Cães e gatos, especialmente na classe média e alta, foram humanizados. Em vez de adereços simpáticos, transformamos cães e gatos em parte integrante da afetividade humana. As raças são variadas e, como todo dono de animal sabe, ao passear com seu animal, parte do sucesso do bípede está relacionada ao quadrúpede. 

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Usei esse exemplo para pensar o que eu dizia no começo. O século 20 viu surgirem códigos de proteção aos animais e, hoje, uma cena de espancamento de um cachorro na rua pode causar indignação muito intensa. A antropomorfização dos animais é quase completa e visível ao longo da minha geração. Cães e gatos foram tornados filhos. Sua morte provoca luto familiar e até depressão. 

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Graciliano Ramos inovou muito ao fazer o conto Baleia, que daria origem a Vidas Secas. Imprimiu personalidade ao animal. Baleia parece mais matizada nos sentimentos do que os pais Fabiano e Vitória. As crianças nem têm um nome. 

Há dois anos, eu dei um curso em São Paulo sobre a história da concepção de Deus. Dois jornalistas de um importante órgão de imprensa vieram fazê-lo. Perguntei, no intervalo, sobre a motivação. Eles disseram que havia sido feita uma pesquisa no jornal e foram identificados dois temas de máxima atenção do público. Com a pesquisa, os diretores enviaram jornalistas em missão de angariar conhecimentos a fim de que a empresa se afinasse com a vontade soberana dos leitores-clientes. Quais os temas? O primeiro era óbvio: Deus, o que explicava a presença no curso. O segundo? Animais de estimação. Não me recordo se a ordem era crescente ou decrescente de importância. Em todo caso, pensei em silêncio: a ideia bíblica de um Adão nomeando e submetendo a natureza ia dando lugar à divinização egípcia dos seres. O Gênesis recuava diante do Livro dos Mortos. 

Tivemos um santo cachorro na Idade Média, São Guinefort. Os animais foram humanizados. Será que o próximo passo seria torná-los deuses? Há cemitérios para animais de estimação. Campos-santos guardam a vontade de homenagear com a esperança do reencontro. Há sempre uma promessa de alma quando sepultamos com reverência. 

Estamos em maior sensibilidade em relação aos outros seres vivos ou diminuindo nossa crença no humano? Não sei. Só sinto que tenho saudades da Lucrécia e do Drop. Bom domingo a todos vocês. 

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Opinião por Leandro Karnal
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