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Criação sem fim

Já me habituei à cena: toda vez que vem à minha casa, ele corre os olhos pelas paredes da sala – e, ao constatar que o quadro continua lá, não esconde um certo desagrado. E nem sempre se limita a torcer o nariz. Em mais de uma ocasião, meu amigo anunciou o desejo de levar embora, trocando-o por outro, o objeto de sua contrariedade. Não, não se trata de um desses críticos enfezados cuja alma cobre-se de brotoejas em presença de determinadas obras de arte. Sérgio Sister, você sabe, é artista, e dos melhores que temos em atividade – e autor do quadro em questão, belo e generoso presente do qual dá mostras de se arrepender.

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Por Humberto Werneck
Atualização:

Não chega a ser, entre seus pares, o caso mais agudo de perfeccionismo pós-criação – mas também nele volta e meia bate a tentação insana de retrabalhar obras já saídas do ateliê.

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O mesmo se passa com Paulo Pasta, pintor que hoje precisa conter-se para não voltar a quadros que ele mesmo dera por concluídos.

Um dia, possuído por feroz autocrítica, convenceu a colega Celia Euvaldo a lhe emprestar uma pintura que a seu ver carecia de esforço corretivo. E por pouco a história não borrou a amizade deles. “O quadro”, conta o Paulo, “virou, sei lá, uma natureza-morta, e ela não gostou nem um pouco.” 

Nunca se sabe aonde pode levar a ânsia de perfeição. Do desenhista José Octavio Cavalcanti se conta que, em visita a um casal de amigos, se deparou com um desenho seu, presente de casamento, e decidiu retocá-lo in loco, imediatamente – com tanto ardor que seu lápis acabou por transbordar do papel e avançar, desenfreado, por uns palmos de parede. 

Já Claudio Cretti nem queria retocar, queria é dar sumiço num trabalho a seu ver constrangedoramente juvenil, presenteado à amiga e colega Stella Barbieri, obra que teve o dissabor de reencontrar, anos depois, exposta em lugar de honra numa casa da família da artista. Não adiantou Claudio prometer substituição, pois a mãe da Stella tem apego àquele seu atestado de imaturidade artística.

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Antes que você diga que também esta crônica precisa ser retrabalhada, o que nem se discute, devo explicar a que vem esta conversa: ela brotou depois que falei aqui de Murilo Rubião e Raduan Nassar, perfeccionistas da literatura vitaliciamente empenhados em retocar (“despiorar”, diria o não menos obsessivo Otto Lara Resende) textos há muito publicados e republicados. As artes plásticas também têm desses maníacos, veio me lembrar um leitor, com o agravante de que costuma ser mais complicado retrabalhar um quadro do que remendar um texto. Nessa sesmaria, a obsessão deu origem a uma palavra em língua francesa: bonnarder, com a variante bonnardiser, verbo intransitivo que designa o ato de seguir retocando obra própria já despachada para o mundo, até mesmo à revelia do proprietário. 

O neologismo nasceu do insopitável impulso que levava o pintor Pierre Bonnard a tentar despiorar seus quadros. Farto folclore a seu respeito dá conta de incursões dele em museus e galerias, nos quais, depois de despistar os vigilantes, sacava uma caixinha com pincel e tinta e se punha a corrigir supostas imperfeições de sua lavra. Isso feito, Bonnard se escafedia, radiante como um colegial após garatujar no quadro negro uma vingança contra o professor. Conta-se que em 1938 o pintor foi flagrado por um guarda no Museu do Luxemburgo, em Paris, no ato de retocar o verde da folhagem de uma tela. Interpelado, identificou-se – e explicou ao boquiaberto funcionário: “Você sabe, um quadro nunca está pronto...”. 

A esse respeito, o artista José Alberto Nemer ouviu do crítico Jean Cassou uma historinha divertida. Diretor do Museu de Arte Moderna de Paris na década de 1940, o mestre disse certa vez a seus comandados: “Estão vendo aquele senhor de paletó xadrez, boina e maleta na mão? Pois bem, se ele abrir a maleta e começar a retocar um quadro, podem deixar, não interrompam”. Era Bonnard. “Mas, e se o quadro não for dele?”, perguntou alguém. “Mesmo assim, deixem”, orientou Cassou, “ele só o estará melhorando”.

Baixando bem a bola, a anedota me fez pensar numa pessoa de minhas relações que é dada “bonnardar” obras alheias. Não se pode dizer que seja um ás dos pincéis, mas não lhe falta devoção pelos quadros, sobretudo se providos de moldura exuberante, dessas que empurram para segundo plano a obra propriamente dita. Limitado também pela esbelteza de seu saldo bancário, conforma-se em adquirir quadros em feiras de rua. 

Em casa, a tela passa pelo cavalete de pintor antes de ganhar espaço na parede. Humilde, o novo dono não se mete a corrigir o que feito pelo artista. Apenas quer acrescentar o que lhe pareça estar faltando – uma choupana na curva do rio, um coqueiro descabelado pelo vento, umas vaquinhas a vagar no pasto. Inútil protestar contra a sem-cerimônia de seus pincéis. “Comprei o quadro”, dá de ombros esse Bonnard dos pobres, “posso fazer o que quiser”. Tivesse ele comprado a Última Ceia de Da Vinci, a galera de Jesus provavelmente perderia alguns apóstolos, a julgar pelo que me disse outro dia a criatura: “Acho que tem gente demais nessa mesa”.

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