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Luzes da cidade

Cortem-lhe o biscoito!

Biscoito tradicional do Rio foi autuado em flagrante por insultar o paladar de um jornalista do 'New York Times'

Por Lúcia Guimarães
Atualização:

NOVA YORK - Uma rosca de polvilho foi indiciada nas páginas do mais importante jornal de língua inglesa. O meliante atende pelo nome de Biscoito Globo e foi autuado em flagrante por insultar o palato de um jornalista enviado pelo New York Times para a cobertura da Olimpíada. Colocado na viatura, o biscoito foi parar na delegacia do sarcasmo. Lá, os meganhas são bem treinados num esporte que não recebe medalhas olímpicas, mas frequenta o pódio da mídia contemporânea. Na verdade, sarcasmo não é a palavra ideal para descrever o enquadramento do biscoito ofensivo. A palavra mais adequada é snark. Foi cunhada por Lewis Carroll no século 19, no seu longo poema Caçada ao Snark, de 1876, que descreve a perseguição a um animal imaginário. O autor de Alice no País das Maravilhas era um Guimarães Rosa da invencionice linguística e snark ganhou vida própria, evoluindo para um popular adjetivo, snarky, pessoa que faz observações cortantes, mas não para esclarecer um assunto. Em outras palavras, um azedo gratuito, ao contrário do azedo polvilho que contribui, há meio século, para a longevidade do biscoito. Como filha, mãe e avó de compulsivos consumidores do Biscoito Globo, fui forçada a um reexame do meu discernimento palatal. Somamos quatro gerações de autoengano? Será um ritual associado a relaxar nas areias da minha cidade o equivalente alimentar à sensaborona música axé? Tantos dilemas, tão pouco tempo para digeri-los. A reportagem que, desconfio, há de beneficiar vendas do biscoito castigado, era intitulada O Carnaval dos Sentidos no Rio Termina na Fila da Comida. O biscoito de polvilho entrou como metáfora para a afronta da culinária carioca ao autor, que, no entanto, absolveu as lanchonetes de sucos e carrocinhas de churros. Churros cariocas? Condenadas, com meu apoio, foram as pizzarias “inferiores” e japoneses que fazem nigiri pequeno demais. Sou do tempo em que procurar sushi e pizza para ter experiência gastronômica no Rio provocaria riso. E que falar em Michelin refletia intenção de comprar pneu, não de descobrir a qualidade da comida num guia.  A descoberta de um biscoito-metáfora para ilustrar o que o visitante considera a supressão de um dos sentidos, o paladar, entre os cariocas, ilustra também o pecado original de sediar a Olimpíada no Rio. A cidade espetacular, dilapidada década após década por uma classe política que não deveria ter licença nem para operar carrocinha de cachorro-quente, não tinha, então, e não passou a ter condições de sediar um evento deste porte sem atrair indignação justificada de atletas e snark da mídia. Os turistas que amavam o Rio e ainda ficam perplexos com sua beleza não esperam o mesmo que visitantes do evento que a megalomania tzarista do PT infligiu sobre a cidade. Vitaminado por expectativas, o escriba forasteiro se confessa perplexo pela falta de sabor de um biscoito. Sem falar português, se queixa de que, ao vagar pela cidade, não encontra comida que preste. Há 30 anos, não consigo superar minha perplexidade pela falta de sabor de uma instituição nova-iorquina, o bagel, um pão em rosca, cujo nome vem do iídiche. O bagel foi originado há séculos nas comunidades judaicas da Polônia, seus ingredientes apenas água, sal açúcar, farinha e fermento. O bagel é celebrado em prosa e verso na história judaica na Europa e em Nova York. Philip Roth já foi visto comendo bagel com salmão defumado e cream cheese na deli judaica aqui perto de casa. O pão que não tem gosto de nada, digo eu, tem a seu lado a literatura e um certo centrismo enfastiado. Na adolescência, fiz várias vezes de carro o trajeto Rio–Salvador. Protestei quando meu pai desviou da estrada principal, perto de Ilhéus, para ir comer pitu num restaurante chamado O Céu É o Limite (nome de um popular programa nos anos 1950). Pois o restaurante não passava da saleta de uma casa humilde, com uma mesa separada da cozinha por uma cortina puída, em que a proprietária se revezava entre cozinhar e ficar de olho em crianças pequenas. Aos meus olhos, o local era, no mínimo, insalubre. A refeição foi uma experiência sublime. Nunca mais provei um pitu igual. E nunca apareceu um Proust à procura do pitu perdido para escrever uma rapsódia à sua altura. Como diria Machado de Assis, ao vencedor, as batatas. Mas, ao falso perdedor, o biscoito de polvilho.

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