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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|Conversa nada fiada

Filme ‘3 Antonios e 1 Jobim’ reúne mestres da palavra como Callado, Houaiss, Candido e Tom

Atualização:

Quando Tom Jobim nos deixou, abri seu necrológio com esta frase:

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“Choremos todos com a devida profusão, pois acaba de morrer o nosso melhor Antonio, o nosso melhor Antonio Carlos, o nosso melhor Antonio Carlos Brasileiro, o nosso melhor Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, o nosso único Tom Jobim, o nosso único Tom perfeito”.

Sei que fui justo com o maestro soberano, mas não sei quão injusto com os seus mais notáveis xarás: Callado (também Carlos), Candido e Houaiss, todos mestres da palavra, uma das inúmeras afinidades entre os quatro Antonios que há 24 anos levaram Paulo Roberto Abrantes (produtor) e Dodô Brandão (diretor) a reuni-los num documentário, que título mais enxuto não poderia ter: 3 Antonios e 1 Jobim. Quem o perdeu na época em breve poderá vê-lo numa versão remasterizada e 20 minutos mais longa que a original – em DVD, VOD e nos cinemas. 

São 79 minutos de convivência com o quarteto a trocar ideias, ora em suas respectivas casas, ora à sombra de uma centenária jaqueira na Fundação Raimundo Castro Maia, no bairro carioca de Santa Teresa, com incursões ao Jardim Botânico e à churrascaria Plataforma, também na zona sul do Rio, onde Tom almoçava quase todos os dias – mais um interlúdio pela Pauliceia de Mario de Andrade e da Geração Clima. 

A morte, há duas semanas, do último sobrevivente daquele encontro histórico aguçou meu desejo de rever o documentário, o que fiz com redobrado prazer e mais atentamente concentrado nas intervenções de Antonio Candido. Além do motivo óbvio, o professor era, dos quatro Antonios, o único com quem não tive a honra de conviver. Com Callado e Houaiss trabalhei em jornal e enciclopédias, e deles fiquei amigo; Tom entrevistei várias vezes; do professor só aproveitei (e como!) as lições de seus ensaios literários e a luminosidade de suas ideias sobre a vida e a política. 

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Nem quando precisei confirmar sua simpatia pelo Botafogo, Candido, educado em São Paulo, mas nascido no Rio, falei diretamente com ele. Mas quase dei uma festa quando ele, por intermédio de sua filha, Ana Luísa Escorel, confirmou minha desconfiança. Com sua autorização, escalei-o na ponta esquerda de um imaginário time de intelectuais alvinegros, o dream team cabeça do Glorioso Botafogo de Futebol e Regatas, fechando um ataque formado por Glauber Rocha, Otto Lara Resende, Luis Fernando Verissimo e Ivan Lessa.

Mas voltemos aos quatro Antonios. Velhos amigos, alguns não se viam fazia um bom tempo e o “muito prazer” de Tom para Candido me deu a impressão de que haviam acabado de se conhecer na primeira parada do filme, o apartamento do gourmet Houaiss, que recepciona os outros três Antonios com um fettuccine al dente e exóticas receitas de gafanhotos fritos e farofa de tanajura. “Momentosa reunião”, comenta Candido. Além de propícia a especulações sobre a origem do nome Antonio. “Ninguém sabe”, informa o anfitrião filólogo. Ao acrescentar que o radical “ante” significa estar na frente, Houaiss estimula o gozador Jobim a firular com o étimo e concluir que Antonio Carlos quer dizer “inestimável machão”. 

A pauta é variada e recorrente. Trocam ideias sobre a última flor do Lácio, falam de suas origens sociais e escolhas profissionais, do “país inacabado” (apud Callado) em que nasceram, do legado positivo do segundo governo Vargas, do golpe militar de 1964, prestam homenagens a Vinicius de Moraes (com direito a declamação: Tom escolheu A Casa e Candido, O Dia da Criação e a gaiata Balada a Pedro Nava), Drummond, Pedro Nava, João Cabral, Guimarães Rosa, Glauber Rocha, Villa-Lobos. E, finalmente, a Noel Rosa, com todos cantando Com Que Roupa? numa folgazã saideira na Plataforma, um dos clímaxes do descontraído bate-papo. 

Senso de humor é virtude fundamental, observa Candido, e sua falta “um dos dramas do mundo”. Pessoa séria demais, trombuda, acrescenta, “é uma coisa assustadora”. Um dos problemas do Brasil, a seu ver, era a falta do riso. “O riso é profilático”, arremata, antes de voltar a um dos assuntos recorrentes na conversa: a educação, citando Condorcet (“Quando todos os homens forem instruídos, todos seremos felizes”) e aproveitando a deixa para retomar outra de suas obsessões, a utopia, cuja anunciada morte não se cansava de lamentar.

“A utopia cria o homem superior, faz você subir acima de você mesmo”, insiste o professor. “Nós estamos numa era de homens inferiores; não existem grandes homens”, já dizia em 1993. De lá para cá, como sabemos, a escassez só aumentou. 

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Por duas ou três vezes, Candido enaltece a influência benéfica da imigração estrangeira. Acreditava que os imigrantes “ajudaram a modernizar o País”, mas lastimava sua cooptação pela oligarquia brasileira: “O imigrante chega aqui, vira colono de café, compra sítio, vira fazendeiro, fica rico, e começa a tratar os empregados exatamente como fora tratado. A oligarquia brasileira é tão poderosa que coopta todas as classes dominantes sucessivas. A mesma classe, não as mesmas famílias, está no poder há 400 e tantos anos”. 

Ninguém discorda. 

No embalo de seu entusiasmo pela miscigenação, Candido destaca a graça física com que os africanos, esbeltos e longilíneos, aprimoraram a raça brasileira, não se furtando a gabar-lhes o “traseirinho bem arrumado”, eufemismo na certa imposto pela presença de uma câmera. De todo modo, não consigo imaginar o elegante mestre de todos nós pronunciando a palavra bunda, se bem que ela desfrutasse das preferências dos outros três Antonios e de um terceiro Carlos, o Drummond de Andrade. 

Opinião por Sérgio Augusto
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