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Com o cabra Cabrera

Eu tinha acabado de ler, ainda em provas, Havana para um Infante Defunto, o romance de formação de Guillermo Cabrera Infante, quando, em outubro de 1987, desembarquei em Cuba, uma vez mais em missão jornalística. A reportagem que me levara à ilha nada tinha a ver com o grande escritor cubano, exilado em Londres desde 1965 – mas tratei de aproveitar cada momento livre para conhecer cenários do livro que ainda fervilhava na minha cabeça. Antes de qualquer outro, o casarão da rua Zulueta, 408, onde Cabrera, vindo do interior, viveu a sua adolescência, nos anos 1940.

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Por Humberto Werneck
Atualização:

Decepção: daquele cortiço, descrito como promíscuo e erotizado “falanstério”, nada restava além da altíssima fachada, na qual as janelas eram como olhos vazados. Do outro lado, o mato baixo prosperava entre poças d’água e restos de pavimento em que o menino Cabrera talvez tenha pisado, aqui ladrilhos de cozinha, ali a madeira apodrecida do que pode ter sido um quarto de dormir. Onde terá existido o banheiro onde ele viveu a apoteose masturbatória descrita com mão de mestre no breve capítulo “Amor com a garra”? Nas laterais dos prédios vizinhos, remanesciam retalhos de parede recobertos de azulejos e, suspenso sobre o nada, cai-não-cai, a relíquia escatológica de um vaso sanitário. Desventrado, o antigo falanstério de Cabrera deixava ver, ao fundo, o velho edifício que, sob as barbas do socialismo, arremeda servilmente o Capitólio da capital americana. Para completar o quadro de desolação, o céu de Havana se fechara, prometendo uma daquelas tempestades de outono em cujo bojo podem vir ciclones.

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Semanas mais tarde, de volta a São Paulo, fiz por telefone uma entrevista com Cabrera Infante, para a IstoÉ (faria outra, para o Jornal do Brasil, quando saiu Mea Cuba), e no papo pós-jornalístico lhe contei que acabara de visitar o 408 da rua Zulueta. “Ah, e como está aquilo?”, perguntou ele, tomado de súbita ansiedade. Quase me arrependi de ter tocado num assunto que lhe seria penoso, mas, não tendo como retroceder, enveredei por uma descrição naturalista a que não faltou o vaso sanitário nas alturas.

Cabrera fez um largo, transcontinental silêncio, e então disse que nenhum outro visitante da rua Zulueta lhe fizera uma descrição assim verossímil do nada a que o tempo e a incúria das autoridades socialistas haviam convertido o cenário de sua adolescência. Fiz mais, disse eu, fiz um punhado de fotografias. ¡Mándamelas!, pediu ele com toda a ênfase de que são capazes os arrevesados pontos de exclamação da língua espanhola.

Presencialmente, como hoje se poderia dizer, nosso primeiro contato aconteceu semanas depois, quando Cabrera veio lançar Havana para um Infante Defunto. “Guillermo, ¡el muchacho de las fotografías!”, disse a mulher dele, Miriam Gómez, quando Luiz Schwarcz nos apresentou. (Fez mais sucesso como fotógrafo amador o muchacho que sonhava ser reconhecido por sua prosa jornalística...).

Bons escritores costumam ser melhores por escrito – desconfie dos que cintilam mais ao vivo –, mas também como pessoa Cabrera Infante esteve longe de me decepcionar, nos dias em que estivemos juntos em São Paulo e na visita que lhe fiz em Londres, anos mais tarde, em companhia de Claudio Cretti. Com a cara mais séria deste mundo, ele dizia coisas divertidas, e também ao vivo era um craque no jogo com as palavras. Indagado sobre sua orientação ideológica, não titubeou o revolucionário da primeira hora que não tardou a romper com o regime de Fidel: “Sou um reacionário de esquerda”.

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Quando lhe perguntei se Miriam Gómez seguia sendo atriz, como nos tempos cubanos, foi lapidar: “Ela representa muito para mim mas nada para o público”. Homenzinho carrancudo e de pasmosa rigidez corporal (se o chamavam pelas costas, voltava-se com a lentidão de um transatlântico), Cabrera não era galante apenas com Miriam Gómez, cujo nome cravou nas dedicatórias de pelo menos três livros (“A M, minha motriz”; “A Miriam, múltipla”; “A Miriam, meu vade-mécum”), e que, no desenraizamento do exílio, lhe valia como sua “Havana portátil”. Ela própria admitiu à repórter Sylvia Colombo que o marido, falecido em 2005 aos 75 anos, foi um homem de muitas mulheres. Lembro-me do tom súplice com que ele pediu a Mariza, numa enviesada forma de louvar-lhe os encantos, num fim de noite em que fomos deixar o casal no Maksoud Plaza: “Por favor, senhora, deixe este pobre homem descansar!”

Mas a que vem esta conversa sobre o autor de Três Tristes Tigres e outras obras também primas? Ponha na conta da ansiedade de quem não vê a hora de ir buscar, na boca da máquina, seu exemplar do romance Corpos Divinos, mais uma joia póstuma de Cabrera Infante.

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