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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Cérebros de soja

Recursos às artes subvencionados pelos EUA representaram pífio 0,0001% do total do orçamento

Atualização:

George Will, colunista conservador do Washington Post, um mês atrás reconheceu que os recursos às artes subvencionados pelos EUA representaram pífio 0,0001% do total de seu orçamento. Apesar disso, para o colunista, ele deveria ser extinto. Quando subsidiamos soja, diz, sabemos o que vem a ser um grão de soja. O que seria arte?

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A questão é antiga e grave. Reaparece em momento de crise ou em determinadas orientações políticas. Inicialmente, sejamos um pouco menos duros no julgamento. Se você estivesse numa ilha deserta, estilo Robinson Crusoe, preferiria facas, mantimentos e primeiros socorros ou o Tractatus Logico-Philosophicus de Wittgenstein, caso a escolha fosse excludente? Eu, como qualquer pessoa equilibrada, reconheceria que facas são mais úteis na ilha do que reflexões sobre o estatuto da linguagem. Talvez alguém, num arroubo romântico, pudesse dizer que preferiria morrer com livros a sobreviver num mundo sem eles. 

Se tivéssemos de escolher apenas um profissional para levar numa nave a colonizar o espaço, escolheríamos um médico ou um restaurador de arte plumária indígena? Como vemos, a soja de George Will parece fazer sentido. 

Algum bom leitor poderia criticar-me dizendo que usei o reductio ad absurdum, tipo de pensamento que leva um argumento a uma situação extrema, torna-o universal e, depois, tenta demonstrar que a proposta é inválida por causa do absurdo empregado. Seria como dizer que devemos evitar vacina contra poliomielite porque uma pessoa contraiu a doença ao se submeter à dose preventiva. Poucos irão a uma ilha deserta e nenhum de nós decidirá o futuro da colonização do espaço. A possibilidade matemática de a vacina causar mal é infinitamente menor do que os benefícios da prática. Logo, a redução ao absurdo não se aplica. 

Ora, se o orçamento americano já dava tão pouco para as artes, de onde vem a raiva contra o campo da criação? O rechaço às artes, alguém poderia cogitar, é atávico nos EUA. Um dos fundadores da nação, John Adams, escreveu carta a sua esposa em 1780. Admirava Paris, onde negociava tratados comerciais, mas arrematou seu texto dizendo que não perderia tempo enumerando o que via: “Eu devo estudar Política e Guerra para que meus filhos tenham a liberdade de estudar Pintura e Poesia, Matemática e Filosofia. Meus filhos devem estudar Matemática e Filosofia, Geografia, História Natural, Arquitetura Naval, Navegação, Comércio e Agricultura, para que suas crianças tenham o direito de estudar Pintura, Poesia, Música, Arquitetura, Estatuária, Tapeçaria e Porcelana”. 

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Ou talvez essa refutação possa ter pé fincado num irracionalismo materialista mais contemporâneo, numa crítica a processos desconstrutivos de sentido ou de esvaziamento de tudo aquilo que não se aplica imediatamente a valores de mercado. Não é falta de inteligência, mas sim uma cabeça específica: um cérebro de soja. O cérebro de soja julga o mundo pelo visível da matéria e da aplicabilidade imediata. Quando uso essa metonímia, não estabeleço um ataque ao cultivo dessa planta extraordinária, fundamental à nossa base agrícola. O cérebro de soja não é o dos plantadores de soja, mas o de jornalistas, de professores, de políticos, de pessoas que pensam o mundo a partir da matéria. Não são materialistas em si. O que o jornalista americano e quem pensa como ele buscam com a soja é o valor monetário e de mercado, que aparentemente inexiste nas artes. Buscam uma representação simbólica, chamada dinheiro, um pedaço de papel que pode ser convertido em outros valores. O foco é num símbolo tão abstrato quanto um quadro de Kandinsky ou tão sem sentido como uma obra dadaísta de Duchamp.

Estamos todos imersos em cultura e simbolizações. A vida humana transcorre entre metáforas que permitem refletir e que cresceram desde a revolução cognitiva há 70 mil anos. Essa revolução permitiu adaptar plantas, aprimorar sementes, interferir na genética, difundir práticas que aumentassem a produtividade e diversas abstrações que nos tornaram mais distantes da fome que marcou a espécie humana desde suas origens. 

A relação entre produção e abstração está contida nas cavernas de Lascaux. O mesmo homem que representa os animais de caça é o homem que os pinta com fins variados. Por poder abstrair é que o homem foi capaz de manipular a natureza em seu favor. Em virtude da capacidade de se elevar acima da pura matéria e do instinto, para o bem e para o mal, nos tornamos senhores deste planeta. A arte e todas as formas criativas estão na mesma base da melhoria genética de uma semente. Buscamos além porque não somos pura matéria. 

O cérebro de soja se recusa a abstrair. Tem uma fixação pelo prático imediato e dificuldade com o abstrato distante. Seu instinto é o sensorial. Pior, essa limitação passa a ser transformada em sabedoria ou equilíbrio. Ser prático dessa forma é apontado como um modelo, quando é uma limitação estratégica e um defeito tático. O primeiro grande valor da sociedade foi a força. Era melhor quem fosse mais forte. Com o tempo, isso foi deslocado para o dinheiro. Era melhor quem tivesse mais dinheiro. Começamos a revolução do conhecimento: será melhor quem mais conhecimento tiver. O cérebro de soja retrocede uma ou duas casas e volta à força e ao dinheiro. 

Difícil explicar para George Will: sem Lascaux não teríamos aprimorado sementes. Sem Aristóteles não teríamos a pesquisa genética em soja. Mas Aristóteles ensinava no Liceu sobre Retórica, Ética e Lógica. Aristóteles, para nossa sorte, não conheceu soja. Bom domingo a todos vocês. 

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Opinião por Leandro Karnal
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