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Coluna quinzenal do escritor Ignácio de Loyola Brandão com crônicas e memórias

Opinião|Carmen, a morte do esplendor de um mito

Se ela desse uma festa e a pessoa não fosse convidada, saía do Rio para não ser rotulada como out

Atualização:

Carmen Mayrink Veiga, que morreu no início desta semana, se vivesse sua vida como a viveu nos anos 1950 a 1970, certamente seria destruída pelas redes sociais. Mitos como ela são impossíveis agora. Uma belíssima mulher, considerada das mais elegantes do Brasil e do mundo, que sabia receber como ninguém. Seus convites eram disputados, esperados, ansiados. Se ela desse uma festa e a pessoa não fosse convidada, saía do Rio, fazia uma viagem, para não ser rotulada como out. A sociedade dos anos 40 a 70 no Rio era dividida entre os IN e os OUT, como hoje há os Nós e os Eles. Jacinto de Thormes e Ibrahim Sued, os dois cronistas eram os papas que determinavam regras e normas e os que “subiam” e “desciam”. Jacinto, ou Maneco Muller, filho de um diplomata, homem culto e que escrevia bem, foi quem revolucionou a antiga crônica que só registrava aniversários (ou niver) e casamentos (enlaces, como se dizia) nela introduzindo notas de política, cultura, economia, fofocas. Quanto a Ibrahim criou a catalogação IN e OUT. Para os OUT havia também a expressão Shangai. Era ser nada, cafona, brega. Equivalia na época ao Fora Temer... Poucas na sua época foram tão IN quanto Carmen, nascida Terezinha Solbiati, em Pirajuí, interior de São Paulo. Era um deslumbre, modelo para certa classe social, invejada, admirada, repudiada por quem não alcançava tanto brilho, sucesso. E o que Carmen fazia? Nada. Era milionária, bonita, bem-vestida, badalada. Imaginem hoje o pau que ia levar de todos os lados das feministas à extrema esquerda aos politicamente corretos. Na rua, seria linchada. Carmen era casada com outro ícone da sociedade, Tony Mayrink Veiga, herdeiro de uma fortuna e dinheiro que prosperou com a venda de armas. Mais do que isso, ele se dedicava à caça, corria mundo hospedado em castelos de nobres ingleses, franceses, alemães, rumava para a África e matava animais. O mundo era totalmente incorreto. Além de tudo, Tony era muito bonito, bem-vestido. Em todas as listas de mais elegantes do Brasil e do mundo, lá estavam Tony e Carmen. A revista Vogue americana considerava a dupla “o casal mais chique da América do Sul”. Eram deslocamentos em primeira classe (não me lembro se já havia a febre dos jatinhos privados) o tempo inteiro, viviam intensamente o agito do chamado jet set. Enfim, “brilharam” por décadas. Em meados da década de 1990, Andrea Carta, então editor da Vogue, me incumbiu de fazer um número especial sobre Carmen, já então na descendente. Por uma semana, Jacinto de Thormes - amigo desde os tempos do jornal Última Hora, grande figura, elegante - e eu frequentamos e fuçamos o badalado apartamento do casal Tony-Carmen na Avenida Ruy Barbosa, Praia do Flamengo. Ali, Carmem ainda estava nas paredes nos retratos pintados por Portinari, Di Cavalcanti e Andy Warhol e fotografada por um homem do porte de Avedon superstar. Para mim, era uma casa um tanto quanto escura, sombria, tapetes e reposteiros pesados. Porém, quando Carmem chegou para conversar, tudo se iluminou. Continuava bela, um sorriso imenso, simpática, parecia indiferente à debacle que se abatera com a falência do marido, as mudanças da sociedade e a venda de quadros e joias que valiam milhões. Abriu seus armários onde repousava a história da alta-costura, Balenciaga, Christian Dior, Jacques Fath, Paco Rabanne, Chanel, Lanvin, Schiaparelli, Patou, Rochas, além de Givenchy e Saint Laurent, seus preferidos. Ela mais tarde doou tudo para museus da moda. Maneco, ou melhor, Jacinto, passou dias olhando os mais de 400 álbuns de recortes sobre ela. Uma loucura, ela colava até mesmo notas do jornal O Dia, o mais sensacionalista da imprensa. Sua história estava ali, dia a dia, passo a passo. Vimos os cardápios de todos os jantares e almoços, rimos - com ela - da dificuldade de se distribuir os convidados em uma mesa, para que se harmonizassem ou se digladiassem. Havia nela ironia e humor e uma certa inconsciência do mundo, da realidade, das mudanças. Ficaram célebres declarações suas como: “Trabalho como uma negra”, “pobre não pode ser elegante”, “há mulheres ricas que apanham uma revista e correm à costureirinha do bairro e pensam que estão vestindo a alta-costura”, e ainda “a alta-costura acabou”. Ela foi de um tempo em que a mídia se deslumbrava porque Carmen voava a Paris, Roma, ou Nova York e mandava fazer um vestido de milhares de dólares - para o qual comprava um bilhete no avião para que o vestido viajasse ao seu lado e não amassasse - tudo para usar uma única vez em um jantar, uma festa. Usava e depois nunca mais. Hoje, isso seria mortal. Quando a conheci, já estava doente. Sem perder o aplomb (palavra daquele tempo), fazia palestras sobre etiqueta e moda e escreveu um livro. Certa tarde, há alguns anos, tendo ido ao Rio entrevistar Ilde Lacerda Soares para a Vogue, fui almoçar com ela no Country, fechadíssimo. De repente, entrou um velhinho curvado, abatido, enrugado, sentou-se sozinho em uma mesa, comeu com gestos lentos. “Sabe quem é?”, perguntou Ilde. E acrescentou: “Tony Mayrink Veiga, que vive em depressão profunda”. Ele comeu e se foi, meio tropeçando. Morreu em junho de 2016, um ano e meio antes de sua mulher, que acabou de partir aos 88 anos e vivia em cadeira de rodas, impossibilitada de movimentos. Um Rio em que tudo era lenda. 

Opinião por Ignácio de Loyola Brandão
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