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'Cara ou Coroa' reflete sobre a ditadura no Brasil

Filme do cineasta Ugo Giorgetti usa uma companhia de teatro para traçar o retrato da época

Por LUIZ CARLOS MERTEN - O Estado de S.Paulo
Atualização:

Há uma qualidade no cinema de Ugo Giorgetti - seus filmes são muito bem escritos. "A gente tenta, né?", diz o diretor de Cara ou Coroa, que estreia nesta sexta-feira, 07, numa entrevista realizada terça à noite, no Espaço Itaú de Cinema. O conjunto de salas da Rua Augusta estava sendo reinaugurado, havia a barulheira dos convidados lá fora, mas, na sala 1 deserta, Giorgetti conversou com o repórter sobre o novo filme. "Esta é uma lição que vem de (Pier Paolo) Pasolini. Ele dizia que o roteiro é uma peça isolada, uma intenção de filme. Como não é o próprio filme, sua qualidade é isolada e depende do valor literário." Mas Giorgetti tem outra justificativa para seus diálogos muito bem escritos - "A gente escreve bem para tentar seduzir os atores." Os de Cara ou Coroa compõem uma constelação multimídia. Walmor Chagas, Emílio de Mello, Otávio Augusto. Na entrevista que deu ao Estado no domingo, Walmor disse que topou fazer Cara ou Coroa por causa do personagem. O filme usa uma companhia de teatro para traçar um retrato do Brasil sob a ditadura militar. Walmor faz o general em cuja casa a neta e o namorado dela, um jovem dramaturgo, escondem dois militantes, dois 'subversivos'. Há uma sugestão final de que o general, personagem ambíguo, talvez soubesse de tudo. Todo ator é um exibicionista, e Walmor é o primeiro a admitir isso, mas ele não tem muita certeza de haver conseguido passar na tela a ambivalência do general. O próprio Walmor diz que Otávio Augusto é o destaque do elenco. "Conheço o Otávio há muito tempo e sempre reservo um papel para ele. Otávio não é problema, é solução. Chama o Otávio que ele faz bem qualquer papel", acrescenta o diretor. Cara ou Coroa usa uma companhia - e a prisão de integrantes do mítico Living Theatre - como peças condutoras de seu relato, mas não é sobre teatro, por mais que Giorgetti se considere, cada vez mais, cativado por essa mídia. "Ainda vou trocar o cinema", ele brinca. O filme busca traçar um retrato da época, esse ano de 1971, de tanta repressão, quando o regime militar capitalizou a vitória da seleção na Copa do Mundo (do México) para criar uma campanha nacionalista de legitimação - "Brasil, ame-o ou deixe-o". Foram anos de chumbo, duros, mas nada como a lembrança para redimensionar os fatos. Há um narrador, no começo e no fim, e ele fala com a voz de Paulo Betti. "Lembra que, apesar de tudo, 'estávamos vivos e éramos felizes'", Giorgetti arremata. "Éramos jovens." E isso diz tudo.Resistência. Giorgetti já tratou de alguns desses assuntos em O Príncipe, que não era tão bom. Hoje, ele consegue colocar as coisas em perspectiva. "O Príncipe é mais amargo. Cara ou Coroa deveria ter vindo antes, com seu entusiasmo mais juvenil." Os jovens do filme, Geraldo Rodrigues e Júlia Ianina, foram escolhidos com muita pesquisa, indo ao teatro para garimpar novos atores. A história propriamente dita nasceu um pouco torta. Giorgetti acha que o cinema brasileiro já deu testemunhos importantes sobre a resistência à ditadura militar e a máquina de repressão que ela montou no País. Nos sets de seus filmes, ele ouviu repetidas vezes histórias de resistência que nunca o motivaram. Mas então, um colaborador frequente, Mário Masetti, lhe contou como, durante a ditadura, escondeu em casa dois comunistas. Até aí, tudo bem - outros fizeram o mesmo. O que fez a diferença foi uma informação que Masetti acrescentou. "Meus pais com toda certeza perceberam o que estava ocorrendo, mas nunca conversaram comigo sobre o assunto. Criou-se um pacto de silêncio que permaneceu depois." Foi isso que ficou no imaginário de Giorgetti e o motivou a escrever o personagem do General especialmente para Walmor Chagas. Por que Walmor? "Precisava de um ator com o carisma dele, a precisão e a humanidade. O general tem essa fachada de linha-dura, mas é outra coisa." Essa outra coisa não pode significar, anos depois, um amolecimento na forma de encarar a repressão do regime militar, no momento em que está reaberto - pela Comissão da Verdade - o debate sobre desaparecidos políticos? Giorgetti não acredita nisso e defende a ambiguidade de seu personagem. Muita coisa, senão tudo, é real, inspirado em histórias que ele ouviu. A festa dentro do filme é uma reminiscência da casa de Sergio Mamberti, em que Judith Malina, companheira de Julian Beck no Living Theatre, se hospedou. "O grupo deles tinha uma polaca que armou uma barraca na sala. Foram coisas que tentei reproduzir, incluindo a atriz, Juliana Galdino, que se parece com ela." Sob múltiplos aspectos, e não apenas pela qualidade literária de seus diálogos - os de Cara ou Coroa, ele admite que não são tão minimalistas quanto os de Sábado ou Boleiros -, Giorgetti é uma raridade do cinema brasileiro, um diretor que veio da publicidade e nunca é lembrado pelos críticos da chamada 'cosmética da fome', que seria representada por obras como Cidade de Deus, de Fernando Meirelles. É uma discussão velha de dez anos. Para Giorgetti, não há discussão nenhuma. Seria coisa de louco. "São duas coisas muito diferentes. Cinema é testemunho sobre a realidade, propaganda é negócio. Como confundir as coisas?" Ele não confunde, mas não deixa de agradecer à publicidade. "Estes anos todos, nunca parei de filmar nem quando os intervalos entre meus filmes se tornaram maiores." Estava sempre num set, o que ama e lhe faz falta, e foi assim, na publicidade, que surgiu sua ligação com atores que levou para o cinema. Fazer filmes foi sempre difícil. "Quando apresentava o projeto de Cara ou Coroa, muitos possíveis patrocinadores recuavam só de ouvir falar em ditadura, em general", ele diz. O retrato de época inclui uma referência ao Estado. Na época, o jornal usava trechos dos Lusíadas, de Camões, para preencher as lacunas criadas pela censura. Outros jornais da 'grande imprensa' paulista não tiveram essa altivez - e é uma história que você encontra, como denúncia, no documentário Cidadão Boilesen, por exemplo.

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