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Cacilda Becker ganha biografia

Cacilda Becker, Fúria Santa (Geração Editorial), do jornalista Luís André do Prado, será lançado em evento no TBC, palco que a atriz abandonou para sempre no intervalo de Esperando Godot, em 1969

Por Agencia Estado
Atualização:

No intervalo de Esperando Godot, de Samuel Beckett, a atriz Cacilda Becker sentiu-se mal. "Estou tendo um derrame", disse ela, pedindo um analgésico para abrandar a forte dor de cabeça. Não foi suficiente - incapaz de voltar para o segundo ato, Cacilda foi carregada nos braços pelo ator Líbero Ripoli Filho no meio da platéia do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), onde, naquela tarde de 6 de maio de 1969, ela se apresentava para estudantes secundaristas. Vestindo as roupas rasgadas de seu personagem, Estragon, a atriz seguiu, em uma ambulância, para um hospital onde, depois de 39 dias de coma profundo, viria a morrer, aos 48 anos, vítima de aneurisma. Os últimos minutos daquela que ainda é considerada a maior atriz brasileira abrem, de forma impactante, o livro Cacilda Becker, Fúria Santa (Geração Editorial, 626 páginas, R$ 49), uma caudalosa pesquisa do jornalista Luís André do Prado que será lançado na terça-feira, no TBC. São depoimentos dos que estavam no teatro naquele dia, desde nomes conhecidos, como o ator Walmor Chagas, então recém-separado de Cacilda e seu companheiro de palco na encenação de Esperando Godot, até figuras desconhecidas da platéia, como a então estudante Maria Cristina Rodrigues Lopes. Apesar de contraditórios em determinados pontos, são relatos que compõem, como um quebra-cabeça, os tensos momentos finais da atriz antes de sair carregada do teatro. "Foi uma solução para valorizar a importância da história oral", conta Prado, que acumulou 135 horas de fitas gravadas com depoimentos de 250 pessoas. "Também tive uma inspiração cinematográfica, valendo-me de minha experiência jornalística", completa ele. O livro exigiu dele um trabalho árduo, iniciado em 1994 e que ganhou força no ano seguinte, quando se sentiu atraído por um artigo de Sérgio Augusto sobre Cacilda, intitulado justamente Fúria Santa. "Desde aquele momento, sabia que aquele seria o título do livro", conta Prado, que buscou retratar todas as qualidades e contradições humanas da atriz. Nervos - "Cacilda foi importante pelo seu imenso talento, pela vocação artística inata, pela sensibilidade incomum - era um ´feixe de nervos´, como disse Décio de Almeida Prado", comenta o autor, que não teve oportunidade de vê-la atuando. "Ela foi uma trabalhadora incansável, vivendo para o teatro, apesar dos enormes sacrifícios pessoais - mesmo doente, recusava-se a abandonar temporadas." Prado lembra a temporada de Dama das Camélias, no TBC, no primeiro semestre de 1952, quando Cacilda teve uma anexite (infecção no útero) por conta das pesadíssimas saias com armações que era obrigada a usar. "Foi levada diretamente do teatro para um hospital, onde enfrentou uma cirurgia delicada." Desde o início do projeto, Prado sabia que precisava descobrir as origens da atriz, o que certamente lhe daria explicações sobre a mulher que se tornou uma profissional obcecada. Assim, o livro conta desde as origens de avós e bisavós (de ascendências alemã aristocrática, italiana plebéia, além de grega) até os detalhes da difícil sobrevivência de Cacilda em Pirassununga (SP), onde nasceu em 1921. "O que distingue o livro de Luís André dos demais sobre Cacilda é justamente a reconstituição da penosa, miserável vida familiar, o que a forçou a se sentir como ´chefe de família´ desde muito cedo", comenta o crítico e dramaturgo Alberto Guzik autor do prefácio. A responsabilidade surgiu quando o pai da atriz, Edmundo, abandonou mulher e filhas - além de Cacilda, havia Dirce e Cleyde Yáconnis (esta também trilhou a carreira artística). Determinada, Cacilda tentou seguir carreira como bailarina, dançando de pés descalços como Isadora Duncan, até chegar ao teatro, aos 16 anos. Em 1943, Cacilda integra o Grupo Universitário de Teatro, dirigido por Décio de Almeida Prado. Em 48, com a criação do TBC e a conseqüente profissionalização do teatro, torna-se sua principal atriz - no tempo em que se interpretava com voz empolada, Cacilda chegava com sua voz pequena, de timbre peculiar, e, mesmo magra e pequena, impunha-se à platéia de forma irresistível. "Sua dicção era nervosa, martelava as palavras destacando as sílabas", destaca Luís André do Prado. Começava, então, o período mais efervescente na vida de Cacilda, quando ela se separa do ator Tito Fleury, envolve-se com Adolfo Celi até conhecer Walmor Chagas, com quem se casa, tem uma filha (Clara, hoje uma esplêndida cantora) e cria a companhia Teatro Cacilda Becker. "Ela não teve um comportamento de acordo com os padrões impostos pelos conservadores dos anos 40 e 50, o que lhe fez sofrer discriminação", conta o autor. "Ela era uma mulher à frente do seu tempo - conflituosamente, mas aprendendo, tirando lições das condições oferecidas pela vida." A entrega absoluta que a atriz fez pelo palco é reforçada a partir do golpe militar de 64, com a chegada do teatro engajado. Cacilda, mesmo com restrições artísticas contra qualquer amarra ("em teatro não há ideologia, existe ideal", disse, certa vez), coloca sua reputação a serviço da liberdade de expressão, incentivando novos autores - foi em sua casa, por exemplo, que Plínio Marcos promoveu a primeira leitura de Abajur Lilás. "Os últimos capítulos do livro também são significativos, pois apresentam um relato realista da atriz que, apesar de consagrada pelo público e pelos colegas de classe, era mulher que se sentia cada vez mais acuada", comenta Guzik. "Ela realmente se cobrava muito, o que revelava um defeito, a ambição desenfreada", completa Prado. "Mas, apesar das falhas naturais de um ser humano, Cacilda atingiu um patamar no teatro que, acredito, só é pareado por Nélson Rodrigues, na dramaturgia."

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