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Coluna do escritor e arquiteto Milton Hatoum sobre literatura e cidades

Breve diário de um doido (I)

21 de abril, 16h22 - Hoje acordei cedo, antes das 15 horas. Ontem acordei muito tarde, às 6 da manhã. A praça está quase vazia, vou tirar um cochilo.

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Por Milton Hatoum
Atualização:

17h10 - Não me lembro do sonho, por isso vou contar tudo. Estava entre dois grupos... O da direita usava camiseta amarelinha, o da esquerda usava camiseta vermelha, desbotada. Girei o corpo (360 graus) e abri os braços: os grupos trocaram de lado. Ri um bocado dessa troca, ouvi um guerê-guerê dos diabos, depois vi pessoas dos dois grupos comendo fígados e corações humanos. Comiam cru, sem tempero, sem saborear o manjar. E ainda me chamam de doido... 

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Mas no sonho ninguém me chamou de doido. Depois vi no céu duas cabeças congressistas, uma duplinha de grandes excelências, um par de pescoços engravatados; as gravatas riram de mim ou dos grupos, ou de mim e dos grupos. Acho que riram de mim. Por quê? Só por causa da minha nudez? De repente tudo sumiu: o céu, os grupos, as duas gravatas e eu. 

16h28 - Acordei com fome e aproveitei a fome para escrever o sonho no meu diário; fui até a padaria do Genivaldo e ganhei um sonho adormecido, de anteontem, cheio de formigas. Sonho esquisito, creme amargado; mas as formigas são adocicadas. Lambi os dedos e os dedos lamberam as formigas e as formigas lamberam o sonho. 

Anteontem não sonhei, comi um pastel de palmito e a metade de um abacaxi na feira da Barra Funda. Enchi a sacola de frutas e legumes mortos e ganhei um pedaço de carne sebosa, que vou oferecer ao Rei. 

18h50 - A melhor coisa é escrever no escuro e ao lado do Rei, meu cachorro, meu dono. Quando rosno de raiva, o Rei fala comigo, conta uma historinha e eu me aquieto. As melhores histórias acontecem na lua, mas só na minguante, a lua preferida do meu irmãozinho de pelagem clara, suja. Um dia, vou visitar essa lua minguante, quero ver se é verdade o que ele me conta, a verdade dessas histórias me interessa. 

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22h20 - A noite passa com rapidez... Ou é o meu pensamento que galopa? Rei dorme e ronca, ninguém nos molesta nesta caverna, nosso palácio. O cheiro da rua e da praça não é dos mais agradáveis, mas quem não se acostuma ao cheiro, a tudo? Quando uma luz vermelha lambe nossos olhos, sinto medo. E medo quando botas passam correndo, pisando e chutando nossos sonhos. Depois, a garoa enche a caverna, ou a fumaça enche a caverna. Depois, o mundo fica despovoado. Essa é a hora de escrever. 

4h22 - Vejo quatro olhos grandes acesos, deitados na praça. Só pode ser um amigo do Rei. Ou dois amigos. Cachorrões. 

5h40 - Não eram amigos do Rei, e sim as chamas de quatro velas cercando um defunto.

6h10 - O velho ficou de passar aqui às 8 horas em ponto. Já li todos os livros que me deu no século passado. Livros de poesia, bonitos, um deles fala da lua, do conhaque, de pernas brancas, pretas e amarelas... Tantas pernas, meu Deus, e eu tão só, com minhas pernas fracas, meu irmãozinho de pernas tortas, nessa caverna. Rei quis ler um livro, emprestei meus óculos pra ele, coloquei meu chapéu na cabecinha amarela e suja, e nem assim conseguiu ler. Com óculos e chapéu, Rei fica com pinta de intelectual e eu me divirto com essa pose. As pessoas cumprimentam meu irmãozinho iletrado e acariciam o focinho inchado, de tanta vaidade. Vou escrever de novo: o focinho inchado de tanta vaidade. Agora sim. Agora, sim... 

10h00 - O velho é pontual. Posso vê-lo na praça, trouxe mais livros pra mim e vai espichar uma graninha pelo meu diário. Rei está excitado, sabe que vai ganhar ração dupla: comida e carinho. 

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10h04 - Vou parar de escrever e entregar essas folhas para o velho. Outro dia, ele falou que ia publicar meu diário. Disse assim mesmo: vou corrigir umas coisinhas e depois vou publicar teu diário. 

10h03 - O defunto permanece na praça. Nublado. As velas derreteram... E sem chama, sem luz, o corpo morre de verdade... 

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