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A lembrança trouxe também a de outra mina das Gerais, a Lucy Panicali, que pelo final da década de 1960 assombrou a então recatada capital mineira, cuja paisagem moral, depois de sua rápida passagem, nunca mais foi a mesma. Diferentemente da primeira Elke, no seu caso os outros é que se arregalavam. Como no I Festival do Cinema Brasileiro de Belo Horizonte, que seria o último, em 1968. Arrepios de variada natureza percorriam a plateia do Cine Palladium na iminência da entrada de Lucy Panicali: como virá vestida hoje essa doidaça? Embalada em transparências, por um triz não vinha nua. Causou mais sensação do que o Desesperato de Sérgio Bernardes Filho, o longa (e põe longa nisso) vencedor do festival.
Criativa, além de audaciosa. Teve roupa feita com papel de bombom Sonho de Valsa. Num festival de cinema de Brasília, a matéria-prima de seu modelito foi pano de forrar caixão, comprado em funerária, e foi assim trajada que Lucy Panicali irrompeu na Câmara dos Deputados.
Sua invenção mais memorável, porém, foi Le Mocó, casa noturna onde a folia ainda crepitava bem depois de o sol nascer, estridente corpo estranho nas entranhas da Serra, bairro então família a mais não poder. A pancada do AI-5, na noite de 13 de dezembro de 1968, coincidiu com uma festa para a qual os convidados não entraram pela porta, e sim por um túnel de pano, como quem reprisa a viagem a partir do útero. Pode ter sido nessa noite que alguém deu a Lucy a ideia de um outro túnel, inexequível mas urgente ligação direta entre Le Mocó e, nas lonjuras da Pampulha, a clínica Pinel.
Alegando que a casa não oferecia segurança, que era frequentada por menores e sediava orgias, a Polícia, certa noite, cercou o quarteirão e levou todo mundo preso. Quando cassaram o alvará, Lucy Panicali não perdeu tempo com lamentações: deu uma festa saideira, ao fim da qual tocou fogo na casa, dessa vez literalmente, e uma banana para Beagá.
No Rio, dividiu apartamento com o guerrilheiro Eduardo Leite, o Bacuri, caçado e morto. Depois morou em Nova York, no Peru e entre índios na Guatemala; seduzida pelo Rajneesh, foi meditar dois anos na Índia, antes de radicar-se – quase digo radicalizar-se – em Alto Paraíso de Goiás. Quando morreu, em março de 2011, tinha 73 anos de idade e uns 200 de vida.
Lembro-me do último encontro que tivemos, 10 anos antes, num vasto apartamento na rua Aquiles Lobo, em Belo Horizonte. Fiel ao espírito de uma geração que parecia preferir almofadas no chão ao conforto burguês das poltronas e sofás, Lucy, já passada dos 60, bastava-se com dois colchões de solteiro, um em frente ao outro, e foi ali, em pontos extremos da sala, que nos sentamos para papear.
Quando a noite entrou, não lhe ocorreu acender uma lâmpada, ela que de resto era dotada de luz própria. Do canto onde estava, eu quase já não podia divisar a mulher vibrante que falava do passado sem o enjoativo sépia dos relatos de ex-combatente só nostálgico. Le Mocó? “Foi ótimo, cada um se exercia como era, as pessoas eram mais genuínas, mais puras, mais livres.” Se não durou, resumiu Lucy, sem um pingo de amargor na voz, foi por causa das “toxinas do imponderável”. Achou a maior graça quando a chamei de hippie incurável, Madalena nem um pouco arrependida. Ainda maluquinha, admitiu, e isso numa fase da vida em que praticamente todos já “assentaram a cabeça”. A expressão nos divertiu por bons momentos, e me diverte ainda: com que parte do corpo irá pensar quem assenta a cabeça?