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Bizarrias verbais

Chama-se escanção o cara que ajuda a escolher o vinho. Prefiro chamá-lo de sommelier

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Por Humberto Werneck
Atualização:

Num desses falatórios no Facebook, topei há pouco com uma palavra que, suspeito, faz a sua primeira aparição naquele picadeiro virtual. O contexto era um papo de gente suposta ou verdadeiramente entendida em vinhos, capaz de bambolear a taça e nela dar judiciosa cafungada enológica, esse pessoal capaz até de distinguir um tinto de um branco. Aí alguém, com certeza um exibido, me sai com a palavra “escanção”. Imagino que não poucos feicebuquianos & feicebocós tenham feito a careta que fariam se suas papilas gustativas fossem submetidas a vinagre em vez de vinho. Eu próprio fiz um esgar semelhante, anos atrás, quando, tendo escrito para a IstoEra uma reportagem de capa sobre vinhos nacionais, recebi de Otto Lara Resende uma lição, mais uma, como sempre em tom nem de longe professoral: usada em cada canto do mundo para designar aquele camarada (ou melhor, aquelx colaboradorx, como agora manda dizer o politicamente correto) que orienta o freguês na escolha do vinho, a palavra francesa sommelier, feminino sommelière, tem em língua portuguesa, valendo para ambos os gêneros, o equivalente escanção. Não confundir, alertou o Otto em sua carta, com escansão, palavra que significa ato ou efeito de escandir - medir versos contando as sílabas longas e breves, ou a elas dar destaque ao pronunciá-las. Permita-se ao cronista, no seu natural rombudo, uma tentativa de sutileza: dividir em pequenos goles o conteúdo de uma taça pode até ter parentesco com dividir um verso, mas é coisa bem diversa, mesmo quando também um verso seja capaz de inebriar. Botar cedilha em vez de S, ou vice-versa, pode resultar em desastre ainda maior do que lascar um SS em exceção. Por via das dúvidas, farei o possível para não chamar sommelier de escanção - como fez Vinicius de Moraes na Balada de Pedro Nava: “Se o tivesse aqui comigo / Tudo se solucionava / Diria ao garçom: Escanção! Uma pedra a Pedro Nava!”. Num só verso, duas novidades para mim, pois topei também com essa “pedra” no caminho. Em minha vasta e não especializada ignorância, não sabia desse nome alternativo para copo de chope. Como haveria de saber? Em mais de uma ocasião, bebi chope ou vinho em companhia de Antonio Houaiss, e nunca o vi chamar chope de pedra. Nem sommelier de escanção. Até porque, como agora me esclarece o Luiz Horta - outro que tudo sabe sobre a boa vida -, não se trata da mesma coisa: o escanção “usava aquela correntinha no pescoço, com uma tacinha de prata, o tastevin, para provar um pouco antes de servir”. Já o sommelier, nos dias de hoje “está mais para curador, um editor de alguma coisa, sommelier de queijos, por exemplo, ou de cerveja. Um organizador”. Houaiss gostava, é verdade, de bizarrias como “reciprocar” em vez de retrucar, ou “dirimir o diferendo” em vez de resolver o conflito. E seu gosto por esquisitices requintadas se esparramava muito além dos territórios do bem falar & escrever. Gastrônomo dos mais refinados, tinha também quitutes não verbais. Gabava-se de haver degustado gafanhotos, aranhas e formigas, experiência que o habilitou a informar que os aracnídeos são crocantes - além de perigosamente picantes, imagino, antes de serem conduzidos ao fogão. Era por graça, não por bacharelesca semostração, que Antonio Houaiss fazia uso de palavras raras ou mesmo exóticas - arma que gente arrogante e prepotente, bem diversa dele, costuma disparar, à guisa de gás paralisante vocabular, na tentativa de silenciar o interlocutor, ou simplesmente, como disse alguém, épater le foie gras. Exibições patetas e patéticas sobre as quais talvez dissesse: “São coisas de encher quaisquer sacos!”. Se mais não aprendi com Antonio Houaiss, foi culpa minha. De algumas lições talvez me lembre ainda quando o tempo houver corrido sua borracha sobre meus miolos. Antonio Houaiss, que em versão papel ou virtual segue me socorrendo após a morte (ele talvez preferisse óbito, decesso, defunção, exício ou finamento), em versão presencial me ensinou, entre outras aparentes inutilidades, o que vem a ser um Hapax. O substantivo, que no primeiro instante me pareceu perfeito para designar certa ave da mitologia grega (“... e sobre nossas cabeças, emissário de Zeus, baixou um hápax...”), quer dizer palavra ou expressão da qual só exista um registro escrito, sem o quê vocábulo algum tem entrada em dicionário. Exemplos? Lamento, não me ocorreu perguntar ao Antonio Houaiss. Agora é tarde. Meu solitário hápax ficou sendo este, hápax.

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