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Bendito tiro no pé

Enumerar os próprios defeitos pode ser mais producente do que ficar contando vantagem

Por Humberto Werneck
Atualização:

De passagem pelo Rio de Janeiro, o jovem advogado argentino conheceu uma brasileirinha de queixo atrevido, e instantaneamente se encantou por ela. E agora?, deve ter ele coçado a cabeça, àquela altura ainda guarnecida de fios escuros. Problemas não faltavam para quem já se incendiava de paixão correspondida. Não bastasse ser estrangeiro, existia entre os dois enamorados uma considerável diferença de idades, Manolo à beira dos 34, Maria Julieta nos seus 21. E havia um complicador maior: a moça era filha única de pai ciumento, a quem por certo não agradaria a ideia de vê-la sair de sob suas asas para ir viver em outro país. 

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Que fazer?, perguntaria Lenin. 

De volta a Buenos Aires, Manuel Graña Etcheverry, o Manolo, tomou da pena e escreveu a Carlos Drummond de Andrade, escancarando para o poeta e dona Dolores suas pretensões de candidato a genro. 

Advogado experiente, poderia ter sacado em causa própria uma já consistente ficha pessoal, à qual não faltaria menção ao fato de ter sido deputado, e não qualquer: autor do projeto de lei que estendeu às argentinas o direito de votar. Além disso, tinha fumaças literárias (cujo fogo, aliás, manteria aceso até morrer, quase centenário, em 2015), o que talvez contasse pontos junto ao pai da moça.

Mas não: em vez de alardear atributos e atrativos, como faria qualquer publicitário de si mesmo, o audacioso postulante preferiu enveredar por temerária contramão: pôs-se a enumerar seus defeitos e deficiências, entre as quais a origem humilde, o passado de estudante sofrível e a “rapidez incrível” com que torrou seus primeiros ganhos como advogado. Deu, em suma, o que a muitos pareceria ser um tiro no pé.

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Não é que funcionou? Em menos de um mês, Manolo e Maria Julieta davam largada a um casamento que frutificou em três rapazes e que, quando se desfez, não deixou azedas suas relações pós-conjugais; ao contrário: até onde a vista alcança, sobreviveu a cumplicidade do casal, assim como a camaradagem de Manolo com os ex-sogros. Poucos casamentos, arrisco-me a dizer, podem se gabar de serem bem-sucedidos como aquela separação. 

*

Por que esta conversa? É que, uma vez mais, pingam no meu terreiro pedidos para dar pitacos num currículo vitae. Gostar, não gosto, mas em geral aceito sem reclamações, na esperança de poder contribuir com uma limpada, não digo nas qualificações, mas na maneira de apresentá-las. Confesso, porém, que às vezes me vem a vontade, até hoje sopitada, de recomendar:

– Vá por outro caminho, faça que nem o Manolo.

Sei bem do que estou falando. Jamais trabalhei num RH, fosse ele positivo ou negativo, mas desconfio que, até pelo inusitado, despertaria mais simpatia o candidato que em lugar de contar vantagem desfiasse as desvantagens de si mesmo, como fez o genro de Drummond. 

Com o perdão da imagem: quem quer a todo custo vender uma boa imagem muitas vezes procede como a criatura que, no afã de realçar encantos, vai ampliando temerariamente o decote, mesmo quando já não seja apetecível a paisagem assim descortinada. Na hora do vamos ver, não há silicone que dê conta de operar milagre.

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Por onde andei, na minha involuntária e logo apaixonada vida de jornalista, tive a mesa invadida por currículos, não raro esparramados por páginas e mais páginas. Aqui e ali, nas poucas equipes que a contragosto aceitei comandar, me aconteceu de dar trabalho – no bom sentido – a colegas em busca de emprego. Nunca, porém, escolhi alguém fiado apenas nas fanfarras de um currículo. Decisivo mesmo, só o papo presencial, olho no olho. 

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Lembro-me da esplêndida experiência que vivi, na década de 1990, como colaborador da equipe do Curso Abril de Jornalismo. Ano após ano, peneiras continuamente aperfeiçoadas permitiam selecionar turmas cada vez mais promissoras.

Pois bem, não era raro a gente se encantar com algum dos textos que de todo canto do País borbotoavam. Um dia, João Vitor Strauss e eu julgamos haver garimpado um talento de muitíssimos quilates. E animados ficamos até o dia da entrevista, quando tivemos a nossa frente um moço cuja prosa, em radical descompasso com o texto enviado, denunciava algo como genuína vocação de agente funerário – com todo o respeito por uma categoria da qual, em data cada vez mais próxima, haverei de precisar.

De todos os currículos que encarei numa redação de jornal ou revista, ficou a lembrança, tão impagável quanto inapagável, de um candidato que, sentindo esgotada a munição de elogios a si mesmo, lascou, caprichando nas vírgulas: “Conhece, de perto, Elizabeth Taylor”.

Perdi ali mais uma chance de recomendar a um pretendente que seguisse o exemplo do Manolo, ocupando-se menos em contar vantagem do que em franquear suas perebas. Material para isso é o que não faltaria àquele “conhecido visual” da Elizabeth Taylor. 

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