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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|Barracos literários

Atualização:

Tentei entrevistar a poderosa agente literária espanhola Carmen Balcells no final dos anos 1980, mas apesar dos esforços de Nélida Piñon, sua hospedeira no Rio, o máximo que consegui foi um convite para jantar. No Copacabana Palace. Na companhia de mais sete pessoas. Foi um prêmio de consolação, compensado pelas agradáveis presenças de amigos como Rubem Fonseca, Luís Schwarcz, Afonso Romano de Sant’Anna, Marina Colasanti, mais Nélida e a escritora chilena Isabel Allende, com quem, devido ao placement, conversei a maior parte do tempo. Naquela época, diariamente requisitada para entrevistas, Carmen, morta no mês passado aos 85 anos, se esquivava de todas elas com uma desculpa mais do que respeitável (não queria pôr em risco a privacidade de seus autores) e outra nem tanto: “Contarei tudo o que sei nas minhas memórias”.  Desconheço se “La Mamá Grande” (era assim que seus agenciados a chamavam) deixou um livro de memórias. Oxalá tenha deixado. Lidando com tantos escritores importantes, seu anedotário literário devia ser dos mais ricos do Ocidente. Frustrei-me por não lhe poder perguntar, entre outras curiosidades, se Carlos Fuentes tivera um caso com a maravilhosa Jean Seberg e se fora mesmo por motivação política a legendária briga entre Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa, como muitos ainda acreditavam.  O affair Fuentes-Seberg acabaria tornando-se público, pouco tempo depois, com o lançamento do romance à clef, do próprio Fuentes, Diana (ou A Caçadora Solitária). Os motivos do rompimento entre Gabo e Llosa só seriam expostos no final da década de 1990 pelo biógrafo do primeiro, Dasso Saldivar. Até então, sempre que indagada a respeito, Carmen se limitava a dizer que “tudo não passara de um lamentável equívoco”. Os desavindos, por sua vez, saíam pela tangente. “Foi uma coisa pessoal”, respondiam, e logo mudavam de assunto, como se algo deveras vergonhoso tivessem cometido.  Verdade que Gabo mantivera-se fiel às suas convicções socialistas e permanentemene solidário a Cuba e amigo de Fidel, enquanto Llosa, desencantado com as esquerdas, guinara para a direita e não perdia uma oportunidade de criticar a ditadura cubana. Que se afastassem um do outro por divergências ideológicas, tudo bem, mas ao proibir que se republicasse o laborioso e encomiástico ensaio que escrevera sobre Cem Anos de Solidão cinco anos antes da briga, Llosa turbinou a desavença, induzindo todos nós a desconfiar de que havia mulher e não política naquela história. Como não desconfiar conhecendo-se o histórico de infidelidades amorosas do mundo literário?  Pushkin, o maior poeta russo, morreu num duelo por causa de uma mulher. Convicto de que sua companheira Natalia lhe pusera chifres com Georges d’Anthès, desafiou este para um duelo e sifu. Anos mais tarde, prestes a morrer de causas naturais, o rival de Pushkin confessou nunca ter consumado seu flerte com Natalia. Dera em cima dela, sim, mas nem sequer a beijara. O poeta duelara em vão.  Ao contrário de Pushkin, Euclides da Cunha foi de fato traído pela mulher e ao tomar satisfações do amante, Dilermando de Assis, com uma arma na mão, levou o tiro que pretendia dar. Não tenho lembrança de outros casos de adultério tão ou quase tão trágicos quanto esse, envolvendo figurões de nosso panteão literário. Olavo Bilac e Raul Pompeia se bicaram por outras discordâncias. Idem Silvio Romero e José Verissimo. Os pomos de suas discórdias envolviam outro tipo de paixão, não justificavam um duelo, apenas algumas trocas de insulto, uns tabefes. Ou uma cusparada no rosto, como a que Jaguar jura ter visto Chico Buarque dar em Millôr Fernandes, num restaurante da zona sul do Rio.  Muito barulho por nada: Millôr se indispusera com seu companheiro de Pasquim Tarso de Castro, grande amigo de Chico, que levara as sobras e foi tomar satisfações do humorista. Millôr atirou no compositor o que havia na mesa do restaurante, Chico revidou com uma cusparada.  Mais animados (e sobretudo mais vistos) foram os barracos de Vidal com Norman Mailer e William Buckley Jr, porque transmitidos ao vivo pela TV. O primeiro no prestigiado talk show de Dick Cavett. Mary McCarthy também rompeu publicamente com Lillian Hellman no programa de Cavett, mas só ela estava presente. O melhor desses arranca-rabos pode ser visto no You Tube.  O de Vidal-Buckley Jr., ocorrido durante um debate sobre a Convenção do Partido Democrata de 1968, já rendeu até um documentário, Best of Enemies, exibido há dias no Festival de Cinema do Rio. Vidal xingou o reaça Buckley Jr. de “criptonazista”, Buckley Jr. chamou Vidal de “queer” (bicha) e ameaçou quebrar-lhe a cara ali mesmo. Nunca mais sequer se cumprimentaram. Com Mailer foi diferente. Vaidosíssimos, ele e Vidal viviam provocando-se mutuamente, por escrito e onde quer que se cruzassem. Antes de se defrontarem no talk show de Cavett, Mailer já dera um sopapo em Vidal, no meio de um sarau lítero-etílico. Mailer reagia com os punhos, Vidal com as palavras. Diante das câmeras, Vidal comparou o desafeto a Charles Manson, o psicopata assassino de Sharon Tate, e por muito pouco não saíram na porrada. Um dia fizeram as pazes.  Como, aliás, também fariam, décadas mais tarde, Salman Rushdie e John le Carré e V.S. Naipaul e Paul Theroux. Por coincidência, tendo como cenário um festival literário. A primeira dupla se reconciliou na feira de Cheltenham; a segunda na de Hay-on-Wye. A Flip está nos devendo uma reconciliação de igual magnitude.  Gabo e Llosa nunca fizeram as pazes. Amigos inseparáveis desde 1967, moraram no mesmo período em Paris e Barcelona, e ainda viviam na cidade catalã quando Patricia, segunda mulher de Llosa, desesperada com as constantes puladas de cerca do marido, buscou consolo junto ao escritor colombiano, que não lhe negou afeto. No auge de mais uma discussão conjugal, Patricia bateu com a língua nos dentes. Na primeira oportunidade, Llosa vingou-se, desferindo um direto no olho esquerdo de Gabo. Dentro de um cinema, na Cidade do México. Na tela, Sobreviventes dos Andes, do cubano René Cardona. Aquele murro histórico merecia um filme de melhor qualidade. 

Opinião por Sérgio Augusto
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