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Retratos e relatos do cotidiano

Bala de leite e caramelo quadradinho

Meu avô materno eu aproveitei durante 6 preciosos anos; meu avô paterno morreu quando minha mãe estava grávida

Por Ruth Manus
Atualização:

Não tenho inveja de muita gente. Não tenho inveja de quem tem jatinho, porque morro de medo de coisas pequenas que voam - inclusive baratas. Não tenho inveja de quem tem mansão, porque deve dar muito trabalho - embora saiba que esse tipo de dono de casa não limpa muitas janelas. Não tenho inveja de quem mora em Nova York, nem em Dubai, muito menos no Morumbi. Mas de outras coisas tenho inveja. Tenho inveja de gente magra sem esforço. De gente calma sem esforço. De gente que não precisa usar soutien. Tenho inveja de quem mora perto dos irmãos e de quem é fluente em espanhol.

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E tenho, no entanto, uma inveja suprema. Uma que me corta ao meio e até me amargura um pouco. Essa é mesmo inveja genuína e cinzenta. Tenho inveja, profunda inveja, de gente que ainda tem avô.

Meu avô paterno morreu quando minha mãe estava grávida. Não nos conhecemos por um estúpido intervalo de meses. Ele estava indo, eu estava vindo. Talvez, se não fossem os malditos cigarros, eu tivesse tido a sorte da companhia dele por uns poucos anos. Ele parece um homem duro nas fotos penduradas nas paredes da casa dos meus pais. Gostaria de ter tido a chance de derretê-lo. Quem sabe um dia, em outra dimensão.

Meu avô materno eu aproveitei durante 6 preciosos anos. Ele cortava as minhas unhas, desenhava o melhor Papai Noel que já vi e construía coisas com madeira. Fez até uma microestante para minha coleção de animais que vinham no Kinder Ovo. Tive um belo, um belíssimo avô, até não tê-lo mais. Meu dois avôs tiveram uma coisa em comum: a gaveta de doces. A do meu avô Marcos eu não conheci. Mas sei que minha irmã rondava descaradamente a gaveta recheada de bombons e balas de leite da Kopenhagen, com ar de quem não queria nada, para o constrangimento da minha mãe perante o sogro. A gaveta do avô Zé Henrique tinha aqueles caramelos quadradinhos da Nestlé, balas de menta e de amendoim. Mas eu não rondava a gaveta. Simplesmente a abria, como toda boa caçula sem vergonha. Criei tanta fixação com meus avôs que, outro dia, estava pensando que poderia dar o nome do meu hipotético filho de Marcos Henrique. No entanto, percebi que Marcos Henrique é um típico nome de zagueiro do Palmeiras. E tanto eu quanto meus avôs ficaríamos bastante chateados se o menino fosse um zagueiro do alviverde. Desisti logo da ideia. Devem haver formas melhores de homenageá-los. 

Gosto quando ouço meus pais falarem deles. Mesmo quando falam mal. Gosto de ouvir as frases que eles diziam, os pratos dos quais gostavam, as manias irritantes que se intensificaram na velhice. Gosto de me sentir um pouco mais perto deles, um pouco mais íntima de tudo aquilo que eles foram e ainda são.

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Realmente, minha maior inveja é a de quem ainda tem avô. Inveja de quem teve que comprar presentes para eles no Dia dos Pais, escolhendo entre livros, pantufas, doces e camisas, imagino eu. Na verdade, eu queria saber como é escolher um presente para um avô.

Tenho inveja de quem almoçará com eles, de quem ouvirá suas histórias repetidas e sentirá o cheiro das suas roupas. Não me lembro do cheiro da roupa do meu avô. Mas se for uma mistura de cheiro de avó com cheiro de pai, certamente será um cheiro espetacular.

Eu gostaria de adiar por alguns anos essa persistente ideia de ter filhos. Mas quando penso nessa coisa de avô, me dá vontade de ter tido filho ontem, de ter tido filho em 2012, 2008, de ter tido filho com uma idade péssima para ter filhos. Só para que eles tivessem muitos anos de avô Pedro e de avô Sertório. Acho que será um dos melhores presentes que eu um dia lhes poderei dar.

Enquanto não o faço, sigo nesse misto de memórias - reais e criadas - um pouco melancólicas, um pouco fantasiosas, um pouco reconfortantes. Quem os tem, aproveite-os. Há no mundo quem daria quase tudo por alguns minutos da sua companhia.

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