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As memórias de um visionário no Brasil

O cineasta alemão Werner Herzog relata o drama de realizar o épico 'Fitzcarraldo' em plena selva amazônica

Foto do author Antonio Gonçalves Filho
Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

Garras cravadas na imagem de um grande barco a vapor atravessando uma montanha, puxado por uma roldana morro acima, dentro da selva. É com essa descrição que o cineasta alemão Werner Herzog, hoje com 70 anos, lembra o ponto de partida de seu mais alucinado projeto cinematográfico, Fitzcarraldo (1982), cujo diário de filmagens, Conquista do Inútil, será lançado no fim do próximo mês pela Editora Martins Fontes/Selo Martins. Herzog diz que, por motivos que desconhece, não lhe foi possível reler por 24 anos os diários. Trinta anos depois, esses textos, define o diretor, permanecem como “paisagens internas nascidas do delírio da selva”.

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Obcecado, Herzog já hipnotizou um elenco inteiro para filmar Coração de Cristal (1976), subiu ao topo de um vulcão de uma ilha prestes a explodir em La Soufrière (1977) e, em Fitzcarraldo (1982), ameaçou matar a tiros o ator Klaus Kinski, intérprete do papel-título, quando este decidiu abandonar as filmagens. Briguento e violento, Kinski causou tumulto entre os índios peruanos contratados para o filme e insultou o cozinheiro da equipe alemã. Herzog, ainda assim, fez cinco filmes com ele, mesmo depois que o ator acertou com uma espada a cabeça de um figurante de Aguirre, a Cólera dos Deuses (1972) - filme, aliás, sobre a barbárie dos conquistadores espanhóis em busca de El Dorado na Amazônia peruana.

Surpreendentemente, Kinski não é o centro das atenções em Conquista do Inútil, diário que começa na casa do diretor e produtor Francis Coppola, em San Francisco, nos EUA, no dia 16 de junho de 1979, e termina em 4 de novembro de 1981, quando Herzog quase morreu esmagado ao acompanhar os movimentos do barco a vapor anteriormente mencionado. Puxado por um Caterpillar, o barco soltou-se, ameaçando emborcar. Herzog correu e, descalço, pisou nos cacos de garrafa deixados pelos índios após uma “fiesta noturna”. Foi nesse momento, segundo Herzog, que ele caiu em si, percebendo a inutilidade de empurrar um navio montanha acima quando poderia simplesmente ter resolvido o pesadelo com simples efeitos especiais. Mas seria, então, um filme de Werner Herzog?

As provações não pararam por aí, revela o diretor. Outros dois barcos encalharam em Iquitos e, quando o novo navio chegou, ele ficou tão feliz que deu um mergulho onde não devia. A opacidade da água não o deixou ver vigas imensas. Para piorar, um dos membros da equipe começou a fazer coisas sem sentido. Herzog desconfiou que o homem estava usando drogas. Insano, ele tocou fogo na cabana do cineasta, pintou o rosto de preto para ficar invisível, como os índios do filme, e se dirigiu para a cidade numa moto, vestido apenas com uma toalha e uma machete entre os dentes. Lá, raptou duas funcionárias de uma agência de turismo. Herzog teve de recorrer ao suborno para soltar o homem, temporariamente demente.

A maldição da selva não acaba por aí. Uma mulher campa morreu de repente no acampamento do rio Camisea, seguindo-se o afogamento de um índio recém-casado. Herzog, correndo de um lado para outro para apagar incêndios da filmagem, ainda teve de suportar o gênio do ator Jason Robards (primeira opção para o papel-título), que recusou comer masato (mandioca) com nojo da saliva que fermenta a mistura. Mick Jagger, inicialmente escalado para o elenco de Fitzcarraldo, a exemplo de Robards, também pulou fora do projeto (seu personagem, Wilbur, foi retirado do roteiro). Herzog, cabelos em pé, ainda teve de se horrorizar com a selvageria de crianças em Iquitos, que colocam um gato dentro da lavadora de roupas (o felino sobreviveu, mas deixou de ser sociável).

A primeira entrada do Brasil no diário de Herzog é o dia 21 de julho de 1980. Ele está no Rio, visita Cacá Diegues e, uma semana depois, testemunha em São Paulo desmaios de alguns espectadores na exibição de O Enigma de Kaspar Hauser (citado pelo título original, Cada um por Si e Deus Contra Todos, inspirado por uma frase de Macunaíma). No mês seguinte já se encontra em Manaus para apresentar o projeto de encenar no Teatro Amazonas não apenas fragmentos líricos para Fitzcarraldo, mas uma ópera inteira (o filme fala de um aventureiro que fica rico com o comércio de borracha e sonha implantar uma casa de ópera em plena selva). A ópera, Ernani, quase não sai. O assistente de direção de Herzog, Werner Schroeter, teve de ser diplomático para fazer o barítono cantar, após o cantor se recusar ao saber que dona Elvira seria feita por um travesti francês.

Herzog reserva poucas palavras para os coadjuvantes brasileiros de seu filme - e eles eram atores do porte de José Lewgoy (que representa Don Aquilino, um barão da borracha) e Grande Otelo (no papel de um ferroviário). Do último, registra em seu diário, no dia 18 de maio de 1981: “Este ágil minúsculo, que parece ter filhos em todo lugar, e cuja esposa, segundo I. me disse, matou o filho comum e depois se suicidou, parece-me hoje... como o diabo em um filme no qual Walter Matthau seria Deus”.

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No diário de Fitzcarraldo, Herzog reserva espaço para o mítico diretor francês Abel Gance, autor do monumental Napoleão. Gance estava com 90 anos e tinha o projeto de filmar a vida de Cristóvão Colombo. Sem energia para levar o projeto adiante, conversou longamente com Herzog em setembro de 1979, tentando convencê-lo a filmar seu roteiro. Os dois beberam vinho na mesma garrafa, mas Gance morreu e o épico não foi feito.

Não foi por falta de disposição. Cinco anos antes, Herzog tinha caminhado mil quilômetros, de Munique a Paris, para encontrar outro mito do cinema, a crítica Lotte Eisner, que morria de câncer. Herzog achava que o sacrifício iria fazer com que sua mentora vivesse. O diário de Fitzcarraldo é também um registro à maneira de Caminhando no Gelo (Von Gehen in Eis), o relato dessa viagem, deixando o leitor à deriva sem saber o que é real e o que se passou de fato. De qualquer modo, é o diário de uma fera do cinema, criador de algumas das mais belas imagens da sua história.

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