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Coluna quinzenal do escritor Ignácio de Loyola Brandão com crônicas e memórias

Opinião|As cartas não mentem jamais

Nós netos não podíamos visitar os avós naquela hora nem ficar olhando o namoro

Atualização:

“Manolita, não! “Gritou tia Ignácia, irmã de meu pai, precipitou-se e desligou o rádio. Criança ainda, eu estava com seis anos, aquilo me deixou embasbacado. Muitas as vezes eu a veria transfigurar-se cada vez que Francisco Alves cantava Manolita. Podia ser na quermesse da igreja, ou na Araraquara Repórter, que oferecia música e notícias em alto-falantes no footing, em carros de som que passavam anunciando produtos. Se era na sorveteria ela levantava-se, deixava a taça como estava e partia. Eu me impressionava com aquela tia, também minha madrinha, e com o modo como ela se transtornava com a canção. Perguntava, não explicavam. Crianças não tinham direito a saber nada da vida dos adultos. Daquele tempo me ficaram frases como “ouça esta valsa Manolita”, ou “era uma tarde em Sevilha, quando madame foi consultar” e uma imperiosa: “as cartas abertas ali sobre a mesa, a velha responde com toda firmeza.” Tia Ignácia era especial. Severa, católica, Filha de Maria, associação religiosa que congregava apenas virgens, era pura doçura no dia em que me levou à papelaria Neide. No futuro, o dono da papelaria, Geraldo Neves, se casaria com Maria Helena de Moura Neves, autora de gramáticas e grande linguista brasileira. Fomos comprar meu primeiro material escolar. Os Neves têm parcela em minha formação. Os cadernos, um pautado e um de desenho, caneta, pena, vidro de tinta, lápis, apontador, borracha, régua, e o estojo. Caprichosa, certa tarde, minha tia se preparava para encapar os cadernos. Duas da tarde, o radio da vizinha, tocou Manolita. Todos ouviam alto, às vezes estavam no quintal para alguma tarefa. Tia Ignácia parou, deu um soluço, cortou o papel errado, correu para o quarto, vovó me olhou, disse: “Não é nada, é só essa música que dá muito azar, foi ela.” Canção que só trazia desgraça, me disseram mais tarde amigas íntimas dela como Maria do Céu, Zélia, Carmem de Paula. “Cada uma de nós teve seus problemas com Manolita. Doenças, rompimentos, perda de emprego.” Cresci e Manolita caiu de moda. Porém dentro de mim, ao ouvi-la eventualmente, me vinha a imagem de tia Ignácia tomada pelo choro. Por anos tentei saber que música era aquela. Adulto, perguntei a jornalistas especializados em música e as respostas foram vagas. Passado muito tempo, aos 38 anos, Ignácia se casou com Francisco, levou sua vida até 2002, feliz, tendo amado muito, segundo confessou a Inês a sobrinha que estava ao seu lado na morte. Esqueci o assunto até a semana passada quando, aqui em São Paulo, deixando a quitanda da chinesa Cláudia ouvi alguém gritar para o outro lado da rua: “Manolita! Desapareceu! Tive medo que tivesse morrido.” Olhei para aquela Manolita, setenta anos, altiva. Corri para casa. Como não tinha pensado nisso? A internet. E Ruy Castro que sabe tudo de música. A canção tinha sido um dos grandes sucessos de Francisco Alves, em 1943, segundo o Ruy. Era uma versão feita por Eduardo das Neves, grande palhaço que viveu no começo do século, a partir da valsa de valsa do francês Leo Denidorf (1878-1953). A letra longuíssima tinha por título Alza Manolita, que eu entendia “ouça esta valsa Manolita.” Conta a história de uma jovem apaixonada pelo toureiro Pedro, amado também por Cacilda. Na dúvida, Manolita consulta a cartomante que lhe garante: “Enquanto vida ele tiver, não será de outra mulher, crê no que digo e verás, que as cartas não mentem jamais. ” Pedro vai tourear em Madri e Cacilda comenta que ele se foi por outra, não ama Manolita”. Na mesma tarde em que Pedro estreou na praça de touros, Manolita voltou à cartomante que lhe garantiu: “Ele é seu, de mais ninguém”. Naquele momento, Pedro, ferido de morte, agoniza. A cartomante confirma: “Alza, alza, Manolita, tudo na vida tem fim, eis o Valete a afirmar, teu Pedro sempre foi teu na vida, acaba de expirar”. Somente tempos depois Maria do Céu, avançada em idade, me contou o “mistério.” Tia Ignácia, na altura dos 21 anos, quando eu estava com apenas cinco, teve um namorado, o Bento Machado, que morava em Garça, cidade próxima a Marília. Bento vinha de duas em duas semanas e o namoro era na sala de visitas de vovô Brandão, o mesmo que aparece em meu livro Os Olhos Cegos dos Cavalos Loucos. Namoro contido, casto, mão na mão, risinhos e sussurros. Depois, trocas e trocas de cartas e telegramas. Nós netos não podíamos visitar os avós naquela hora nem ficar olhando o namoro, que era o que mais queríamos fazer, para descobrir o que significava esse tal de amor. Um dia, cessaram as visitas e as cartas de Bento. Finalmente chegou uma carta registrada para meu avô, comunicando que Bento ia se casar com outra em Garça e estava devolvendo a aliança. Atacada pela depressão ou melancolia, tia Ignácia chorou meses, quase perdeu o emprego na ferrovia. E todos, vizinhos, colegas de trabalho, amigas, juravam que a culpada era a canção Manolita, que sofria preconceito por parte dos católicos, ao dar importância à figura de uma cartomante, à leitura de cartas, coisas esotéricas. Por anos procuramos a aliança devolvida. Dizem que teria ficado com as sobrinhas. Todas negam. Desapareceu, ninguém da família soube dela nunca mais. Existiria em algum escaninho de parentes? Quem de nós vai encontrá-la um dia?

Opinião por Ignácio de Loyola Brandão
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