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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|As areias da ampulheta: atrasados e pontuais (segunda parte)

Começamos, na semana passada, a conversar sobre atrasos. Tentarei ser objetivo.

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Atualização:

Começamos, na semana passada, a conversar sobre atrasos. Tentarei ser objetivo: O tempo da natureza dominou a humanidade na maioria dos nossos quatro milhões de anos como espécie. Vivemos em torno dos binômios dia e noite, inverno e verão, estação das chuvas e seca. Essa noção estava na base do esforço para constituir calendários.

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Sobre o tempo natural que nos cerca e antecede, sobrepusemos a medida e o controle dos mecanismos. O relógio é uma artificialidade que raramente está afinado com o tempo natural/biológico. 

Medir o tempo também é um exercício de controle de pessoas. Os monges adaptaram a divisão romana das horas e criaram orações e textos para cada momento. Vésperas, completas, matinas: as horas canônicas serviam para louvar a Deus, dividir o dia em partes e controlar os religiosos presentes no coro. Da mesma forma, o chamado sistema de fábrica do século 18, foi uma solução para disciplinar o trabalho num espaço e num cronograma. No mosteiro, na fábrica e no mundo dos negócios de hoje, o controle do tempo é a vitória da disciplina e de um determinado modelo de produtividade ou de vocação. Conciliar natureza/corpo/controle: esta é a tríade que embala e atormenta a humanidade. 

O crescimento das relações urbanas e de produção fez surgir relógios em praças públicas. Decorativos no campo, tornaram-se fundamentais nas cidades. Primeiro nasceu o ponteiro de horas. Depois surgiu o ponteiro dos minutos e, por fim, o dos segundos. Cada nova haste no relógio inaugurava uma nova necessidade de quantificar. 

O tempo é, teologicamente, dom de Deus. Assim Santo Agostinho o define e defende que não deveria ser vendido ou alugado. Critica-se a ideia de juros porque seria pagar pelo tempo, uma dádiva gratuita. O tempo da Igreja, como definiu o medievalista Le Goff, foi cedendo lugar ao tempo do mercador. Hoje falamos em hora-aula e hora-técnica. O tempo do mercador é vitorioso em quase todos os lugares. O homem da cidade vai ao campo e experimenta o tempo da natureza mais colado ao tempo teológico. O mundo rural é o paraíso para quem está desobrigado de semear ou ordenhar.  O Calvinismo tornou-se a ascese do capitalismo. A vida regrada e produtiva era boa para a salvação da alma e para os negócios. Tempo é dinheiro! Controle de ambos assinala os eleitos. A terra do calvinismo, Genebra, tornou-se também a terra dos relógios precisos. Os trens suíços são um salmo piedoso de louvor ao Senhor do tempo. A nova faceta de Deus também chegou às ilhas do Norte e “pontualidade britânica” virou clichê.

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A perfeita harmonização do tempo relógio com o tempo biológico e o tempo natural é um esforço que demanda muito. Implica uma ação cultural e uma disciplina imensa. O valor horário deve ser inculcado desde a tenra infância. Histórias virtuosas sobre benefícios da pontualidade e castigos exemplares de atrasados são fundamentais no processo. 

O clima ajuda, mas não determina. Invernos rigorosos estimulam ordem. Se você não fizer compotas e conservas antes do frio, passará necessidade. Se não tiver uma casa minimamente aquecida e sólida, a neve vai soterrar seu descaso. Os trópicos são mais generosos com o improviso. O mundo temperado é um mundo onde o imperativo categórico é menos clemente com o desleixo. Pessoas pontuais são mais estratégicas. O que seria estratégia aqui? A capacidade de antecipar um problema. O pontual organiza antes e sai mais cedo. O pontual é mais pessimista: leva em conta que tudo pode dar errado. O atrasado é dotado de incorrigível otimismo: supõe que chegará ao ponto no instante que o ônibus se aproximar e que não existirá trânsito. Isso torna o pontual mais tenso e um pouco mais duro com o mundo. Os atrasados crônicos, por vezes, são mais leves. Não querem ensinar nada a ninguém. O pontual é mais pedagógico. O retardatário canta: “deixa a vida me levar, vida leva eu...” 

A pontualidade tem o defeito de toda virtude: ela também é um modo defesa. Tenho mais medo das coisas e imagino que, controlando o tempo, controlo as coisas. Controle é algo que irrita as pessoas ao nosso redor. Tudo o que for bom e belo grita ao mundo: por que você não me imita? Por que não me segue? O atrasado, o preguiçoso e o lento não desafiam ninguém. Eles emolduram as virtudes alheias. O homem atrasado é a zona de conforto do homem pontual. O pontual reclama, até exalta sua indignação, mas está feliz por se julgar melhor.

Sociedades pontuais são difíceis para o indivíduo e boas para o grupo. Sociedades mais tolerantes com as variações são boas para o indivíduo e ruins para o grupo. Pense na seguinte questão: quem são as pessoas ideais para compartilhar espaço no trânsito e quem são as melhores pessoas para compartilhar espaço na cama? Raramente os dois grupos terão o mesmo passaporte.  Será que alguém que chega tarde ao Enem levou em conta essas questões? Provavelmente não. Por isso chegaram atrasados. Seria bom que pensassem no custo que o atraso pode ter. Também seria curioso que, de quando em vez, pontuais pensassem no custo do zelo obsessivo pelo horário. Viver está além de ser pontual ou atrasado. Um bom domingo a todos vocês. 

Opinião por Leandro Karnal
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