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Arquivos implacáveis

Abro uma velha caixa – e de lá saltam, falantes, Vinicius, Drummond, João Cabral...

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Por Humberto Werneck
Atualização:

Era assim, Arquivos Implacáveis, que se chamava uma página criada e durante anos administrada por João Condé em O Cruzeiro, por muitas décadas a maior revista semanal brasileira. A cada semana, o leitor encontrava ali um escritor, consagrado ou nem tanto, de quem o jornalista pernambucano publicava, além de amostras literárias, alguma curiosidade – um depoimento, um manuscrito, bilhetes, autógrafos, documentos pessoais, fotografias, caricaturas. Nada parecia escapar à compulsão documental desse homem que Agripino Grieco, crítico então em moda, menos por bom faro literário do que pelo fel de sua pena, chamou de “gari da literatura”. Que fosse! Eu adorava o que vinha na peneira do Condé.

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Não posso falar pelos demais, mas imagino que outros moleques da minha geração também gostavam de fazer escala naquela página. Generalizo um pouco o prazer que tinha em saber, a respeito de meus autores prediletos, ou mesmo dos desconhecidos, alguma coisa além daquilo que tivessem posto em seus escritos. A página de João Condé não chegava a ser uma Caras da literatura, longe disso, mas, havendo nela um tanto de mundanidade benigna, você poderia ficar sabendo, por exemplo, se o seu poeta poetava de manhã ou à noite, ou se o romancista famoso era mais chegado numa feijoada ou num vatapá.

Não sei se o nome da seção foi extraído de um texto de Carlos Drummond de Andrade, ou se foi o poeta que o encastoou na frase que viraria epígrafe vitalícia na página de O Cruzeiro: “Se um dia eu rasgasse os meus versos, por desencanto ou nojo, não estaria certo da sua extinção: restariam os arquivos implacáveis de João Condé”. 

Muito mais tarde vim a saber que o autor da frase era, também ele, um arquivista implacável, ao ponto de guardar, entre outras relíquias, a minúscula chave com que se fechou o caixão de sua avó paterna. 

Você leu bem: caixão com chave – e saiba que isso, mais de um século atrás, não era morbidez exclusiva de umas poucas famílias enlutadas. Por algum motivo, quem sabe para que não escapassem de sua derradeira embalagem, ou dela não fossem subtraídos, os defuntos, naquele remoto outrora, eram ritualmente chaveados. Será que remanescentes escaldados temiam reincidência de quem em vida dera trabalho ou desgosto? Algum gaiato (este aqui, pelo menos) poderá pensar: considerando-se o fato de que as chaves ficavam em poder de seus familiares, muito falecido haverá de enfrentar problema póstumo quando, no Dia do Juízo, forem os mortos convocados a evacuar suas tumbas. Consegue imaginar o espetáculo? Com ou sem chave, quero estar lá para presenciar – vivo, de preferência – cenas como o reencontro de Vinicius de Moraes com as nove esposas, para não falar na massa inumerável de seus amores contingentes.

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O nome de Vinicius não me vem ao acaso neste momento em que, às voltas com relíquias minhas, me vejo confirmado, também eu, na condição de arquivista implacável. Sem possuir a disciplina e a metodologia rigorosa de Drummond e de Condé, pertenço ao time dos guardadores compulsivos da mais variada e até bizarra miscelânea. Só não tenho chave de caixão. Com uma solitária vantagem sobre aqueles dois: justamente por serem caóticos, meus guardados volta e meia proporcionam reencontros tão inesperados quanto maravilhosos. 

Esta manhã, por exemplo, e eis finalmente o que me trouxe a esta conversa, revirando as entranhas de um armário, topei com caixas de fitas, aquilo que os antigos usavam para gravar, das grandes e das miúdas, em desordem mas nem por isso carentes de identificação. E a primeira que apanhei foi o registro de uma entrevista que fizemos, Regina Echeverria e eu, com Vinicius de Moraes, para as páginas amarelas da revista Veja, em abril de 1979, pouco mais de um ano, portanto, antes daquele 9 de julho em que o poeta se foi, ou, como costumava dizer, “desobjetivou”. 

Por esquecimento ou cautela, guardei também um gravador, e imediatamente botei para rodar a fita, que, 38 anos depois, me devolveu a voz de Vinicius, aqui e ali afinada com o tilintar de pedras de gelo no copo de gim bebericado, num começo de tarde, à guisa de café da manhã.

Sem gim, mas abastecido de súbita animação, não pretendo desempoeirar apenas esse papo com o poeta, pois na mesma caixa de que saltou Vinicius me aguardam, entre muitas outras vozes, Drummond falando de Pedro Nava, Nelson Rodrigues repassando sua vida para a Playboy, João Cabral loquaz para uma capa da IstoÉ, Fernando Sabino para as “amarelas” da Veja nos 20 anos do Encontro Marcado, Cícero Dias relembrando Jayme Ovalle e, sentencioso e peremptório como costumava ser, José Saramago na sua ilha de Lanzarote. 

O inconveniente, para o arquivista, será o reencontro com o lastimável portunhol de que ele se valeu para entrevistar em Paris o peruano Manuel Scorza (Status, 1974) ou na Califórnia a chilena Isabel Allende (Playboy, 1999), mixórdia linguística que até a sós lhe faz corar. Como não há, para essa modalidade de registro, plástica, botox ou photoshop que permitam desentortar o passado, meus arquivos de voz talvez sejam, mais que os outros, implacáveis. 

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