PUBLICIDADE

EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Armadilhas da inteligência e da fé

A leitura do passado é sempre um diálogo com valores presentes

Atualização:

Sóror Juana Inés de la Cruz é o maior nome das letras mexicanas do século 17. É autora pouco conhecida no Brasil. Seu mais famoso poema, Homens Néscios (Hombres Necios) é analisado por quase todo estudante da língua espanhola. Na obra, a religiosa acusa os homens de duplicidade: não sabem se querem mulheres recatadas que recusem assédio ou as que dizem sim às investidas. Quando uma aceita ser cortejada, o homem a repudia como fácil (ou com qualificativos piores). Caso ela resista bravamente ao avanço, é tachada de fria ou mal-resolvida. Em plena Cidade do México colonial, a escritora denuncia a perene duplicidade masculina de projetar nas mulheres sua própria tolice. Juana era uma mulher bonita e de brilhantismo incomparável. Nascera em situação ambígua para os rígidos padrões oficiais do mundo de então. Filha da Igreja, ou seja, gerada dentro de uma relação não oficial, demonstrou um precoce e intenso gosto pela leitura e pela escrita. Dizem ter aprendido latim em velocidade assombrosa: 20 lições. Tinha forte talento poético. Escreveu peças que chegaram a ser representadas em plena Madri, capital do império. Era talentosa, mas, para o mundo mexicano da segunda metade do século 17, tudo isso era nublado por ser mulher e filha ilegítima. Não tinha condições de um bom casamento pela “mancha de origem”. Acabou entrando para o convento das jerônimas, pois seu objetivo era estudar. Leitora voraz, escritora prolífica, hábil na confecção de doces (com o auxílio de uma escrava) que vendia para obter mais livros, instrumentos científicos e musicais, Sóror Juana foi uma personagem atípica em um mundo masculino e oprimido pela censura. Sua fama crescia a cada ano e suas boas relações na corte vice-reinal despertavam temores e invejas. Ousada, a monja discordou, em público, de um sermão do Pe. Vieira, o famoso jesuíta do Império Português. A chamada Carta Atenagórica (porque digna da sabedoria da deusa Atena) fez sucesso e escândalo, especialmente porque uma freira fazia críticas teológicas a um padre. A poesia Primeiro Sonho (de complexa leitura), a peça chamada Auto do Divino Narciso, a popular e já referida Homens Néscios e a Carta Atenagórica constituem um bom recorte para conhecer a obra da chamada décima musa ou a Minerva da América. Há alguns anos, coordenei um grupo de estudos na Unicamp baseado na biografia escrita por Octavio Paz: Sóror Juana Inés de la Cruz - As Armadilhas da Fé. O autor é um prêmio Nobel reconhecido pelo talento literário. Trata do mundo dos conventos, da vida cultural, de tudo o que constituiu o mundo do vice-reinado da Nova Espanha. Em posicionamento analítico muito distinto, Angel Rama afirma (A Cidade das Letras) que Sóror Juana e suas peças e arcos triunfais eruditos, juntamente com autores como Carlos de Sigüenza y Góngora, constituíam um “anel” de proteção e legitimação do poder colonial. O mundo erudito da corte era uma maneira de tornar o poder válido, cercado por aura de uma competência e inteligência única. A Netflix lançou uma série com a vida de Sóror Juana Inés de la Cruz. A criação de Patricia Arriaga-Jordán foi elaborada para o canal Once (México). O enfoque destaca algumas questões que biógrafos discutem. Qual foi a relação da religiosa com a vice-rainha, María Luisa Manrique de Lara y Gonzaga, esposa do vice-rei Marquês de la Laguna? Seria uma relação amorosa? Há posições variadas. A série insiste, taxativamente, que sim. A leitura do passado é sempre um diálogo com valores presentes. Os episódios roçam em temas como percepção da igualdade de gêneros, o feminismo e a posição crítica com exercícios de fé barroca estranhos ao nosso universo. O olhar de 2017 para um flagelante é sempre de comiseração horrorizada, já que nossas formas de punição e sacrifício são outras. Revela, assim, a duplicidade de toda série histórica: serve para nos conhecer e ao passado.  Talvez, com um pouco mais de verba, a equipe da série poderia ter feito tomadas externas de cenas maiores, como procissões, autos de fé e da própria catedral do México. Domina o plano interno e os diálogos com poucas pessoas. Mesmo assim, as imagens tornam-se obrigatórias para os apaixonados pela obra da autora. Toda obra é uma coleção de liberdades poéticas e de composição de personagens. O austero arcebispo Aguiar y Seijas nunca visitou o convento das jerônimas e não poderia oferecer a ela a possibilidade de deixar de ser freira, como mostra o episódio final. A escolha é uma opção atual, relida de forma psicologizante. O fim da biblioteca da intelectual, mais de quatro mil volumes (algo extraordinário para a época), é alvo de debates. Teria ela sido forçada ou, coberta de pudores e escrúpulos religiosos, teria mandado vender sua coleção? O tema é vasto. Inés não era uma feminista nem uma crítica da Igreja. São máscaras póstumas que vamos colocando de acordo com necessidades contemporâneas. Inés era Inés: uma mulher brilhante, linda, cheia de conflitos em um mundo complexo, submetida a fios que urdiam a ela, ao arcebispo e ao seu confessor. Parte disso é a armadilha da fé que Octavio Paz descreveu: ser freira possibilitou muita coisa e a impediu de outras. Essa é a situação de cada um de nós: tudo que nos nutre também nos mata. O mérito da angústia de Inés é que a transformou em páginas brilhantes. A desgraça é que a nossa angústia só dá insônia e azia. Bom domingo a todos vocês.

Opinião por Leandro Karnal
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.