Análise: Politicamente correto e estrategicamente enganado, sobre as novas marchinhas de carnaval

É preciso que os defensores da correção política deixem de gritar e apontar dedos se quiserem realmente se fazer ouvir.

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Por Daniel Martins de Barros
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O banimento de algumas marchinhas carnavalescas é só mais um capítulo na novela do politicamente correto. Fenômeno mundial, mais intenso em alguns lugares do que em outros, a ideia por trás dele é muito bem intencionada: a linguagem cotidiana não apenas refletiria as diferenças históricas existentes entre grupos (privilegiados versus desprivilegiados, por exemplo), como também favoreceria a manutenção dessas diferenças. Se livrarmos a linguagem dessas influências, podemos ao menos reduzir um dos fatores que perpetuam injustiças. Duas grandes questões precisam ser respondidas. A primeira é se essa é apenas uma opinião ou se há evidências empíricas de que seja verdade. A segunda, e tão importante quanto, é descobrir porque o politicamente incorreto incomoda tanta gente. Se conseguirmos encontrar essas respostas, pode ficar mais fácil decidirmos que rumo tomar como sociedade. Para os críticos do politicamente correto, o mundo está ficando muito chato: levar a sério marchinhas carnavalescas com conteúdo hoje considerado preconceituoso seria uma bobagem. Nesse quesito, contudo, as evidências científicas apontam para outra direção. Vários experimentos realizados sobre o tema mostram que, por um lado, o humor não faz as pessoas se tornarem preconceituosas. Ninguém ouve uma música e pensa: “É mesmo! Negros são inferiores, como nunca me dei conta?”. Por outro, as piadas criam um ambiente de aceitação à discriminação - assim, quem já acreditava existir diferenças qualitativas entre grupos sente-se menos constrangido e tem mais chance de agir de forma discriminatória. Não por acaso, são as pessoas que mais se divertem com esse tipo de humor. Se está correto, porque então o politicamente incorreto é tão criticado? Um dos mecanismos mentais que nos permitem apreciar o humor é acreditar que uma piada é apenas uma piada, convencendo-nos que elas não têm problema. Em maior ou menor grau, todos fazemos isso - a comédia sempre traz um pouco de agressividade ou violação de normas e, para apreciá-la, temos que dar esse desconto, considerá-la um tanto inocente. O politicamente correto incomoda ao denunciar que, quando fazemos isso com o humor sexista, racista ou contra qualquer minoria, estamos agindo como vetores de desigualdade. E, como ninguém acha que é preconceituoso, quando nos dizem que passamos a infância endossando injustiças nas matinês de carnaval, por exemplo, a tendência é nos sentirmos mal e resistirmos à ideia. Não se desmascaram defeitos ocultos impunemente. O problema é que essa resistência faz com que as pessoas passem a desdenhar do politicamente correto como se fosse mera chatice. Os seus defensores reagem então com agressividade diante dessa tentativa de desqualificação, alimentando um círculo vicioso de hostilidade de parte a parte.  É preciso que os defensores da correção política deixem de gritar e apontar dedos se quiserem realmente se fazer ouvir. E é preciso que a sociedade entenda que eles têm um ponto. Ou essa novela se transformará numa história sem fim.

* É PROFESSOR COLABORADOR DO DEPTO E INSTITUTO DE PSIQUIATRIA DA FACULDADE MEDICINA DA USPANÁLISE:

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