Análise: Peça ‘Branco: o Cheiro do Lírio e do Formol’ não pode ser reduzida a passionalidades

Acusada de racista, peça tem persistência para se chegar nas profundezas das falsas polêmicas

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Por Maria Eugenia de Menezes
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Em tempo de polêmicas virtuais, os temas de controvérsia se sucedem com rapidez. E o gozo, talvez, esteja justamente nessa velocidade. Tudo passa, nada se mantém. Quanto tempo dedicamos a cada nova contenda nas redes sociais? Na ágora reinventada, é preciso opinar (sempre), é preciso posicionar-se, é mister dizer alguma coisa porque ficar em silêncio equivale a não existir. O ópio da vez é a crença de que a palavra está com todos, de que ter direito a voz significa ter direito a poder. De quem é a palavra? 

Branco: o Cheiro do Lírio e do Formol chegou a ser tachado de racista, após sua estreia na MITsp – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo. Para a atual temporada no CCSP, há notícia de que algumas cenas teriam sido cortadas e muitos adjetivos foram suscitados no debate sobre as intenções e o resultado da peça. Mas vale deter-se naquilo que o dramaturgo Alexandre Dal Farra tenta esquadrinhar: uma busca persistente pelo que se coloca detrás das falsas polêmicas. 

Cena de 'Branco' Foto: André Cherri

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A obra, dirigida pelo autor em parceria com a atriz Janaina Leite, revela-se penosa, desconfortável, titubeante em suas escolhas. O processo de criação merece um protagonismo aborrecido – são trazidos fragmentos de textos criados originalmente para o espetáculo e depois descartados, ideias de encenação que não vingaram, colaborações de artistas negros que não puderam ser aproveitadas. Discute-se por qual razão se diz isso e não aquilo. Mas há caráter nessas hesitações. Uma honesta declaração de impotência. 

Não se trata de sofisma. Os meios tons conciliatórios não mais dão conta da questão racial no Brasil. A violência e o preconceito não são abstrações. Mas fica a sensação de que há verdades que não podem ser simplesmente ditas; há verdades que precisam ser descobertas. Ainda que soe despropositado descobrir o que está às claras. O Brasil assiste a uma transformação, ainda nebulosa: são movimentos identitários – calados pela falácia do país cordial – que exigem a escuta. O que esteve à margem quer ganhar centralidade. E quem estava no velho espaço de senhor do mundo faz o quê? Se o opressor fala do oprimido, do seu ponto de vista, pode estar apenas repetindo estereótipos e preconceitos. Falar sobre a questão do negro – se você não é negro – é racista? Falar sobre a opressão da mulher – se você não é mulher – é machista? A questão é como falar de outro lugar. 

Alexandre Dal Farra mira o poder do discurso. Branco é uma peça sobre o lugar de quem diz. A produção do discurso não é livre, mas controlada e distribuída segundo dispositivos de poder. Habitar outro lugar enunciativo não é uma escolha. Solidarizar-se com o outro não é ser o outro. E os limites dessa alteridade se colocam como reflexão aqui. Além dos extensos comentários sobre o processo criativo, a estrutura da obra contempla a história de uma família disfuncional. Um pai, um menino e uma tia conversam na sala sem que isso tenha, aparentemente, nenhuma relação com qualquer questão racial. São brancos, discorrem sobre a venda de um terreno da família e sobre as primeiras experiências sexuais do adolescente. André Capuano e Clayton Mariano surgem como figuras entorpecidas, viscosas. Janaina Leite treme incessantemente, retesada, como se recebesse pequenas descargas elétricas. Seus corpos parecem lugares desconfortáveis, difíceis de habitar. 

A atmosfera de violência instaurada por Branco é um traço recorrente na dramaturgia de Dal Farra. Na trilogia Abnegação, ciclo de peças iniciado pelo grupo Tablado de Arruar em 2013, contemplava-se a ascensão do PT – Partido dos Trabalhadores – ao poder e sua posterior crise. Isso, contudo, nem sempre foi feito de maneira direta: Abnegação III, por exemplo, não chegava a tematizar questões político-partidárias. Antes, tratava de política ao construir episódios de brutalidade e cinismo. A plateia sofria no escuro, como volta a sofrer agora. Nesses trabalhos, há uma angústia inominável no ar. Como se flagrassem o último instante antes da tempestade.

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