Adorável malabarista

Na esteira de Vanessa Netto, a bela, talentosa e trágica musa de quem falei na semana passada, era natural que me viesse outra interessante personagem: o pai da moça, Oscar Netto, mais uma figuraça que eu, tendo chegado tarde ao mundo, não pude conhecer. Se alguém me lê, e espero que não sejam só os revisores, haverá quem saiba da paixão que me despertam certas criaturas dotadas de brilho diferenciado, mas cuja cintilação corre o risco de perder-se, por falta de quem a mantenha acesa após a morte. Gente como Jayme Ovalle, homem singular, artista repleto de arte mas incapaz de botá-la para fora (e, ainda assim, manancial de inspiração não só literária para poetas graúdos como Manuel Bandeira e Vinicius de Moraes), cujos traços há muito esmaecidos busquei reavivar nas páginas de O Santo Sujo.

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Por Humberto Werneck
Atualização:

Não me proponho investir ambição igual no caso de Oscar Netto, mas a frustração de não tê-lo conhecido me leva a catar aqui e ali um pouco da memória desse “intelectual disfarçado de homem de negócios”, como disse dele seu contemporâneo Paulo Pinheiro Chagas. O rótulo, porém, é insuficiente para abarcar a multiplicidade do que foi Oscar Netto, falecido em 1953 aos 61 anos de idade. Outro memorialista, Odin Andrade, viu nele um agente civilizador da provinciana Belo Horizonte da primeira metade do século 20, graças a um “requintado estilo de vida” que acabou por estabelecer ali novos padrões. As festas que “o grande anfitrião de Minas” dava em sua chácara, no bairro da Serra, chacoalharam irreversivelmente o marasmo de uma sociedade que se obstinava em manter embolorados hábitos trazidos de Ouro Preto na mudança da capital, em 1897.

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Mais de um relato permite recuperar um pouco do que foi Oscar Netto, ajudando a recompor a imagem de um homem elegante e bem vestido, cujo sorriso, descreve Odin Andrade, punha à mostra “dentes magníficos, capazes de desanimar um estudante de Odontologia”. Audacioso também no trato com o dinheiro, conta ainda o autor de Juventude, Juventude, ele “ganhava e perdia fortunas, entrava nos mais variados negócios, arriscava enormes paradas”, numa terra onde “os capitalistas, enrustidíssimos, escondiam seus haveres debaixo do colchão e contabilizavam seus lucros e perdas na maior moita”. Na montanha russa de seu saldo bancário, Oscar Netto gangorrava entre a opulência e o vermelho, a tal ponto que certa vez, ao vê-lo boiar na piscina, alguém sentenciou: “Eis aí a verdadeira dívida flutuante!”.

Mão aberta, esfarinhava os ganhos em presentes e recepções. Graças ao temerário timoneiro, a família pôde viver à larga no Rio de Janeiro, para onde Oscar Netto espraiou seus negócios. Foi sócio, numa seguradora, do poeta Augusto Frederico Schmidt – a quem, aliás, apresentou o sobrinho Lúcio Cardoso, que por seu intermédio veio a publicar, pouco mais que adolescente, seu primeiro romance, Maleita. Quando se deu mal, Oscar Netto refluiu a Belo Horizonte – e, sem lamentações, começou tudo de novo.

Inteligente, irônico, malicioso, aonde fosse ele acabava sendo o centro de rodas animadas, nas quais destacava-se também por traços de excentricidade como não usar chapéu, adereço masculino então obrigatório. Notável contador de histórias, sua presença, diz Paulo Pinheiro Chagas, “espantava o tédio”. Safo, tinha na ponta de língua todo um manual de como dobrar banqueiros e deles arrancar prorrogações e cobres. Convinha procurá-los pela manhã, ensinava Oscar Netto, quando ainda não estariam por demais azedos, e, de preferência, em meados do mês, entre dois balancetes do banco. E jamais, jamais deixar transparecer a falta de dinheiro, pois “os banqueiros só gostam de emprestar a quem não precisa”.

Movia-se, nesse terreno, com inigualável competência – maestria que veio uma vez mais comprovar num momento que para ele se prenunciava catastrófico. O presidente de um banco convocara os avalistas de Oscar Netto, mais de 20, para uma reunião crucial. Faltando pouco para a hora marcada, 10 da manhã, estavam todos na antessala quando o inadimplente apareceu, sereníssimo, cumprimentou um por um e, sem maior cerimônia, adentrou a sala da presidência – para de lá sair, sorridente, ao cabo de meros 10 minutos: “Tudo resolvido, senhores”, trombeteou, “perdoem-me o involuntário aborrecimento”. Em seguida, rememora Pinheiro Chagas, ajeitou o nó da gravata e, teatral, comandou a debandada em suposta língua italiana: “Avalisti, dispersate!”

Não menos memorável ficaria sendo outra tirada sua, essa numa roda de bar na qual um engenheiro deitava falação a respeito de uma revolucionária novidade, a bomba atômica – tão seguro de si e de sua sapiência, conta José Bento Teixeira de Salles, que lá pelas tantas Oscar Netto o interrompeu com um pedido de esclarecimento: por que é que o cabrito, o cavalo e o boi, nutrindo-se do mesmo capim, produzem fezes de formatos tão diferentes? O engenheiro embatucou. “Pois então”, fechou Oscar Netto, “como é que você quer pontificar sobre bomba atômica, se não entende de bosta nenhuma?”

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