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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|Adeus, Don Draper

 Daqui a algumas horas, saberemos o que o destino (ou melhor, Matthew Weiner) reservou para Don Draper & cia. Os americanos se despedem deles amanhã à noite; nós, na segunda-feira. Ao cabo de sete temporadas, reitero a impressão que me deixaram os capítulos iniciais: o apogeu da teledramaturgia não se deu com Os Sopranos, mas com Mad Men e sua lânguida e inebriante narrativa. 

Atualização:

Antes de ser hipnotizado por sua trama, pelos diálogos, pela empatia dos personagens, pelo charme e o talento do elenco, por sua opacidade onírica, fui fisgado pela impecável reconstituição dos ambientes, do guarda-roupa e do ethos cultural dos anos 1960, por si só um espetáculo, que me remeteu aos contos de John Cheever e a filmes como Sob o Signo do Sexo e O Homem do Terno Cinzento. 

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E então? Teremos um desfecho seco, elíptico, reticente, como nos Sopranos, ou algo menos enigmático? Seus créditos de abertura sempre insinuaram uma hitchcockiana queda livre de Draper, para a decadência ou a morte; as chamadas para os derradeiros capítulos falam no “fim” do personagem; mas só Betty, por enquanto, está marcada para morrer. Seu câncer, diagnosticado no penúltimo capítulo, foi um choque, mas não totalmente uma surpresa. Nem quando amamentava o filho Betty abria mão de uma tragada. 

Todos na série fumam (e bebem) ad nauseam. Era mesmo assim naquela época; Weiner só exagerou um pouco, com a melhor das intenções. Uma das muitas coisas que podemos dizer a respeito de Mad Men é que resultou na mais engenhosa e persistente campanha contra o tabagismo já vista na tela. Desde o primeiro capítulo, por sinal intitulado Smoke Gets in Your Eyes, o cigarro se afirmou como um objeto tão onipresente em cena como na vida de Cosini Zeno, o memorialista de Italo Svevo. 

Já no diálogo inicial, num bar esfumaçado de Manhattan, Draper improvisa uma pesquisa de campo sobre Lucky Strike com um dos garçons. Ao fundo, não a célebre canção de Jerome Kern e Otto Harbach mas a balada Band of Gold. O óbvio nunca teve vez na série. 

A sétima temporada, com episódios mais fragmentados e elípticos, foi uma retomada (ou um reflexo) da primeira. Retomada de temas, falas, figuras (Duck Philips voltou!), e mesmo de cenários e produtos (Coca-Cola, de que Betty Draper foi garota-propaganda no começo da série), para não falar das trágicas consequências do hábito de fumar (noves fora o câncer pulmonar de Betty, a alusão ao estrago causado pelo isqueiro de Draper, ainda Dick Whitman, na guerra da Coreia). Pete e Trudy rejuntaram os trapinhos; Peggy envolveu-se com outro homem casado e terá de provar sua relevância no trabalho outra vez; Joan continuou tentando ter poder num ambiente asfixiantemente machista; até a agência voltou a ser apenas, como no início, Sterling Cooper. 

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Draper, por sua vez, resolveu encarar de frente suas mentiras, reviver e consertar erros e vícios do passado, recontextualizar sua infância rural, descobrir o caminho da redenção, alguma rota para o paraíso (explícita no título do penúltimo capítulo, The Milk and Honey Route), e reassumir sua verdadeira identidade. Perdeu tudo, do emprego ao carro, que afinal deixa para um jovem sucedâneo de Oklahoma, na esperança de que ele desista a tempo de um futuro também sombreado por mentiras e trapaças. 

Sozinho, na beira de uma estrada vazia, foi assim que vimos Draper pela última vez antes do capítulo final, embalado por Buddy Holly (Everyday). Sozinho que nem Cary Grant naquela estrada de Intriga Internacional, espreitado e em seguida perseguido por um teco-teco. Como Betty, Buddy Holly morreu jovem, num desastre aéreo. O personagem de Cary Grant no filme de Hitchcock compartilha com Don a mesma profissão e o mesmo pesadelo da duplicidade: ora é o publicitário Roger Thornhill, ora o agente da CIA George Kaplan. Possibilitar conexões como essas é que fizeram de Mad Men um banquete para cinéfilos e aficionados da cultura pop. 

Induzido pelos créditos e por uma referência a John O’Hara (a série também é um banquete para ratos de biblioteca), desde o início desconfiei que Draper acabaria, como Julian English, não numa “terra de leite e mel” e sim numa estrada para Damasco, ao encontro da morte. Já não aposto tanto nesse dénouement. A queda de Draper talvez tenha sido apenas figurada, simbólica. 

Do muito que já se especulou a respeito nada, a meu ver, supera a tese de que depois de virar Don Draper, Dick Whitman assumiu a persona de um sequestrador aéreo. A aviação esteve sempre presente nas contas da Stanley Cooper (Mohawk, American Airlines, North American Aviation) e na vida de seus profissionais (Pete Campbell, cujo pai morreu num desastre de avião na segunda temporada, terminará a série trabalhando na sede da Learjet, em Wichita, no Kansas)–, daí a hipótese de que Don Draper e um misterioso sujeito chamado Dan Cooper (sem parentesco com Bertram Cooper) eram uma só pessoa. 

Dan Cooper existiu de verdade; com outro nome, desconhecido até hoje. Os jornais da época o batizaram D. B. Cooper. Em 24 de novembro de 1971, apresentando-se como “Dan Cooper” no balcão da North Orient Airlines, no aeroporto internacional de Portland, comprou passagem de ida no voo 305, acomodou-se na última fila do avião, pediu uma dose de bourbon com soda a uma das aeromoças e passou-lhe à sorrelfa um bilhete, com os seguintes dizeres: “Tenho uma bomba na minha pasta, que detonarei se necessário. Sente-se a meu lado. Você está sendo sequestrada”. 

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Sem sair de sua poltrona, só trocando mensagens por escrito com a cabine de comando, sem despertar a atenção dos passageiros, o sequestrador – descrito pelas aeromoças como um sujeito “alto, bonitão, de óculos escuros, bem-vestido, fumante, calmo, educado e bem falante” – fez três exigências: US$ 200.000 em dinheiro vivo, três paraquedas e um caminhão de combustível na pista do aeroporto de Seattle para reabastecer o avião. Todas foram atendidas.

Desembarcados os passageiros, o avião levantou voo, para em seguida retornar a Seattle. Quando a polícia e o FBI subiram a bordo, o sequestrador havia sumido como por encanto, para nunca mais ser encontrado, nem visto ou identificado. 

À luz dos elementos dispostos no cartaz da atual temporada, não seria bizarro se Mad Men terminasse com Draper/Whitman apresentando-se ao balcão do aeroporto de Portland como “Dan. Not Don. Dan Cooper”.

Opinião por Sérgio Augusto
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