A vida e memória em estilhaços

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Por Jefferson Del Rios
Atualização:

O homem dentro do círculo de luz narra o acidente fatal de automóvel com ele e uma criança. A descrição é minuciosa, lenta, dolorosa. A cena pode ser realista, mas não necessariamente. Ar Vazio é o título preciso da peça que cita o verso "museu de tudo", de João Cabral de Melo Neto, e isso faz sentido. O enredo é uma colagem, fragmentos de memória do casal separado pela morte. O pensamento dela, que sobreviveu, por um recurso literário é também o dele. Fantasia plausível. Porque não importa mesmo a verossimilhança. Interessa a possibilidade do fato. O amor e o filho existiram e persistem na dor. O acidente de carro é o dado insuperável. Com tais estilhaços de emoções, Lucas Arantes, jovem poeta do teatro, fala de paixão e abismos. O que prende a plateia não carece de surpresas. O teatro psicológico-existencial sempre foi praticado, sobretudo por anglo-saxões. O que segura o espectador vem da densidade poética do que é dito em ritmo de lembranças que se superpõem. Soma dos traços a definir o absurdo de um lapso banal. Flagrante do gesto não pressentido que desencadeou o futuro vazio e seco. O dramaturgo aparenta ter arrancado o tema de algum canto pessoal, e ele nos chega inteiro ou aos pedaços. Um escritor com indagações numa linguagem densa (a evitar a armadilha da frase feita e do discurso). Não há como ficar alheio ao que se diz porque expõe uma tragédia incomodamente cotidiana, que mora ao lado. A diferença está na arte de colocá-la no palco como um verso de Fernando Pessoa: "Estou lúcido hoje como se não existisse".Por ser dueto em falas paralelas com cruzamentos de ideias, Ar Vazio soa mais prosa poética dramatizada do que conflito com diálogos e desenlace. A pouca troca verbal entre os personagens faz sentido no momento, mas é algo que Lucas terá de cuidar em obra futura. Não lhe custará muito porque demonstra talento desde a estreia com Suspensão (2010). O que oferece agora, com brilho, são monólogos entremeados por conversas passadas ou nascidas do desejo. O homem que morreu não consegue ir embora e a mulher, significativamente chamada Penélope (a que na mitologia grega espera Ulisses), transita entre o passado brutal e a reinvenção da vida. O casal prossegue unido para além do luto. O espetáculo, em direção conjunta de Pedro Cameron e Yukari Carolina, tem o clima básico do original embora talvez pudesse aprofundar sua contundência e a poesia. O autor é mais incisivo. A gravação em áudio do início, um tanto longa, explica que, apesar de tudo, a história não discute a morte. Seria melhor se o aviso fosse representado. Em algum ponto, e de algum modo, o casal teria mais impacto interagindo além do que se vê. Contracenar, sempre e obviamente, faz a interpretação crescer. Já o sublinhado musical é a reiteração de um cacoete geracional de parte do teatro brasileiro. Não se faz climas sem canto em inglês. Ao final da representação, quando se ouve Zizi Possi, fica a dúvida se é um lance de "distanciamento". Mas há acerto e beleza na iluminação coerente com a narrativa entrecortada. O espetáculo tem a sutileza da simplicidade e os descompassos das primeiras viagens. Igor Pushninov e Flávia Teixeira igualmente jovens e em início de carreira, se impõem pela entrega sem maneirismos melodramáticos (visível quando Igor, com sofrimento contido, descreve a tragédia). Juntos - autor, elenco e diretores - anunciam um novo grupo, a Companhia Inerente. Bom começo.AR VAZIOEspaço dos Satyros Um. Praça Franklin Roosevelt, 214, Consolação, telefone 3258-6345. 4ª, às 21 h. R$ 20. Até 26/10.

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