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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|A vida dos outros

A romancista, ensaísta e igualmente prolífica tuiteira Joyce Carol Oates se recusa a escrever por extenso o nome do recém-eleito presidente do seu país. Identifica-o sempre como T***p, como se ele fosse um palavrão. É uma boa opção. Dadas as histriônicas e ideológicas semelhanças entre ele e Mussolini, optei por Trumpolini. Não me lembro se foi Gore Vidal quem pespegou no venal Richard Nixon o apelido de “Tricky Dick”, mas era assim que costumava chamá-lo. A alcunha pegou. O implacável Vidal só não faz mais falta neste momento histórico, neste nine-eleven sociogeopolítico (pouco importa se nos EUA 9.11 é 11.9), por ser imenso o contingente de intelectuais, escritores e artistas estupefatos e indignados com a resistível ascensão de Trumpolini. O “resistível” é cortesia de uma alegórica sátira de Brecht sobre a ascensão ao poder de um sucedâneo de Hitler chamado Arturo Ui.

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Atualização:

Do muito que li, nos últimos dias, a respeito da eleição de terça-feira, quase nada me tocou tanto quanto um comentário do poeta sérvio Charles Simic, radicado na América e blogueiro da New York Review of Books, lamentando “a disseminada ignorância, beirando o cretinismo” que parece ter-se tornado “a nova meta nacional”. Ao desprezo pelas pessoas educadas, que são “o recurso mais precioso de uma nação”, veio somar-se a glorificação (qualunquista, acrescento eu) dos ingênuos incapazes de distinguir uma verdade de uma mentira.

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“Democracias funcionais”, prossegue o poeta, “necessitam de uma população educada e bem informada, indócil e impermeável a logros e à manipulação por políticos e lobistas. Isso ainda é uma utopia, pois há mais lucro a ser extraído do ignorante que do esclarecido, e iludir as pessoas é uma das poucas indústrias que ainda prosperam neste país. Uma população verdadeiramente educada seria ruim para os políticos e para os negócios”. A carapuça nos cabe por inteiro.

Mas não era sobre isso que eu pretendia escrever hoje. Sobre intelectuais, escritores e artistas, sim, mas por outro prisma.  Ainda sob o impacto da desastrada, quiçá malévola e certamente injustificável, revelação do diretor do FBI James Comey de que mais e possivelmente comprometedores e-mails de Hillary Clinton haviam sido encontrados num laptop de sua secretária, mergulhei em dois estudos sobre a perseguição da Polícia Federal americana à intelectualidade e ao pessoal do show business, ao longo do século passado.

Foi no reinado absolutista de J. Edgar Hoover que tudo começou e consolidou-se. O ogro dirigiu o FBI durante 48 anos, oito presidentes da República, 16 ministros da Justiça e 32 congressos. Criou um governo subterrâneo, do qual só abdicou ao morrer, em 1972, com 77 anos. Foi o homem mais poderoso do país, onde mandou mais tempo do que Stalin na Rússia, como Norman Mailer não perdia uma chance de salientar. Mailer foi um de seus perseguidos. Quem não foi?  Walt Disney, por exemplo, não foi. Porque era informante. Idem, Elvis Presley, nem no início da carreira, quando o acusavam de corromper a juventude com sua música e seus rebolados, nem ao tornar-se um ávido consumidor de anfetaminas e psicotrópicos afins, duas décadas mais tarde. O Rei do Rock venerava o Rei da Repressão, a quem considerava “o maior americano vivo”. Operando com o codinome “Coronel Jon Burrows”, acusou os Beatles e Jane Fonda de “envenenarem as mentes dos jovens”. Temia a concorrência.

Em criança, sentia por Hoover uma certa admiração alimentada pela propaganda de seus feitos contra gângsteres e espiões nazistas massificada por Hollywood, cujo ápice foi a série Os Intocáveis, estrelada por um agente da Receita Federal, yes: Eliot Ness. A descoberta das perseguições, mentiras e chantagens comandadas por ele foi um choque pós-adolescente. O ódio foi crescendo, até virar um sentimento inefável quando soube do suicídio de minha musa Jean Seberg.  Por ordem expressa de Hoover, a atriz foi vigiada, azucrinada e caluniada; espalharam que ela fora engravidada por um líder dos Panteras Negras; em agosto de 1979, à beira da loucura, matou-se em Paris. Também já puseram o suicídio de Hemingway na conta do FBI. Henry Roth sobreviveu à tortura mental maquinada pelo Bureau, mas padeceu anos de bloqueio causado pelo medo de que pudessem prendê-lo ou matá-lo. Na raiz dessas ações - dignas da Gestapo, segundo o presidente Truman, ou da soviética KGB - estavam a inveja, os patológicos ressentimentos e a paranoia anticomunista de Hoover, que a tudo que lhe desagradasse ou ofendesse pessoalmente rotulava de “subversivo” e “antiamericano”.

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Um dos estudos a que me referi acima é Modernism on File: Writers, Artists, and the FBI, 1920-1950, editado em 2008 por Claire A. Culleton e Karen Leick. Custa agora uma fortuna. O outro é Dangerous Dossiers: Exposing the Secret War Against American Greatest Authors, do jornalista Herbert Mitgang, no kindle por uma bagatela. Ambos examinam e reproduzem dossiês preciosos, embora incompletos e rasurados (leia-se censurados) antes de sua liberação à curiosidade pública. O de Einstein tinha, originalmente, 1.427 páginas. O do poeta Ezra Pound, 85 páginas mais.

Hoover, que fichava a seu bel-prazer comunistas, simpatizantes, socialistas, liberais e mesmo carolas apolíticos como T.S. Eliot, pelos motivos mais díspares e absurdos, tinha certa fixação nos modernistas (Eliot por ter sido citado no jornal comunista Daily Worker, Gertrude Stein, por sua tênue ligação com a revista Partisan Review) e nos premiados com o Nobel (Sinclair Lewis, Pearl Buck, Faulkner, Hemingway, Steinbeck). Quem quer que se manifestasse a favor de Sacco e Vanzetti e dos republicanos na Guerra Civil Espanhola, tivesse visitado a União Soviética (mesmo que de lá tivesse voltado com críticas ao stalinismo), defendesse a igualdade social, os direitos civis, e criticasse, ainda que de leve, o governo, entrava automaticamente para o índex persecutório. Houve casos, como o de Brecht, acusado de “antifascismo prematuro”, porque combater o nazifascismo antes de oficializado pela Casa Branca, depois do ataque japonês a Pearl Harbor, era “coisa de esquerdista”.

Os G-Men de Hoover invadiam a privacidade dos “subversivos” das formas mais audaciosas. Fuxicavam os originais de seus livros nas editoras, checavam seus hábitos de leitura nos fichários das bibliotecas, rastreavam suas compras em cartão de crédito, infiltravam agentes em suas festas. E, suprema audácia, até em suas casas. O romancista Theodore Dreiser conviveu com um empregado doméstico, em Los Angeles, que era um leva e traz a serviço do Bureau. Lembram do filme A Vida dos Outros? Parecido.

Opinião por Sérgio Augusto
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