Do ponto de vista deste nosso Brasil, onde falcatruas legais convivem com mentiras verdadeiras, ler no maior jornal da sociedade que instituiu a cosmologia do certo ou do errado, do culpado ou do inocente, do preto ou branco e tem horror à dúvida – ou à ponte – que liga dois lados, é uma surpresa. Uma grata surpresa.
Pois há situações em que o paradoxo engloba a certeza e nas quais mentir é o melhor negócio.
É claro que o certo e o errado existem e são, em todo tempo e lugar, definidos e devem ser buscados. Mas quando eles se embolam, não há como enfrentar a dúvida com a régua digital do falso ou verdadeiro! O incômodo promovido pela incerteza, aliás, é maior quando os dois lados são bem separados e há vantagem em mantê-los assim.
No Brasil de hoje, há um enorme conforto no radicalismo chique como nos tempos do rei era comum ir para o céu construindo uma igreja. Nada mais rotineiro do que reprimir a dúvida com uma supercerteza, que se transforma numa acusação e define o Bem e o Mal.
A fantasia do “somos vítimas e vocês, golpistas!” é a fórmula dessa repressão. Pela politização crassa, ela tenta apagar a vergonhosa roubalheira, promovendo o bloqueio da dúvida por meio do populismo. É como dizer: não entendo, não quero entender e condeno os que estão além dessas margens.
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Todos nascemos numa margem. Só um santo ou um poeta como Guimarães Rosa sabem como o meio do rio pode virar uma terceira margem. Margem é fronteira e limite. Fixados na margem, perdemos de vista não somente o outro lado, mas o rio.
Um mundo com muitos fatos e pouca sabedoria inventou fórmulas rudes e simplórias que aumentam as incertezas porque é sempre mais fácil acusar do que compreender. “Contra golpista ou comunista, faça uma lista!” Fazer ou virar fascista é muito mais fácil do que compreender a nossa burocracia do terror, a nossa ética de intimidação e do medo, que tem liquidado amizades e impedido a poesia e a generosidade das alternâncias.
As margens que dividem e confrontam são os dois lados de um mesmo rio. Se não fizermos essa leitura, bloqueamos o nosso entendimento e – escolhendo uma das margens – partimos para o confronto que impede a ponte e o compreender, que chega com a disposição de transitar para o outro lado, o que exige levar a sério o rio na profundidade de suas correntezas. O meio é o lugar do “nenhum nem outro”, que dificulta a acusação. Todo fascista odeia o compreender, mas ama arrolar nomes e fazer listas.
Eu sei que o Brasil é menos complicado e não sei se ele é mais complexo do que as suas representações. Eu tenho sugerido que o “Brasil” lido como governo é uma “realidade” menos amada do que o Brasil “sociedade”, expresso por um time de futebol, pelo carnaval ou por uma poesia do Affonso Romano de Sant’Anna. Distinguir tais dimensões como as margens de um mesmo rio é importante. Teria tal intuição inspirado essa “terceira margem do rio” de Guimarães Rosa, quando ele imaginou um rio com três margens?
Sabemos que o meio relativiza as margens. Visto do meio, o Brasil é um belo rio. Visto como um corpo político de uma de suas margens, ele é uma vergonha, como diz acertadamente Boris Casoy. Seria uma margem de direita e a outra de esquerda? Uma do atraso ou da “ordem” e a outra do “progresso”? E se você mudar de rumo e nadar contra a corrente, as margens não trocam de lado?
A dualidade entre ordem (direita) ou progresso (esquerda) poderia ser ultrapassada pela “terceira margem”, desde que o movimento histórico-ideológico saísse do lugar. Mas as coisas não saem facilmente das margens onde fincam seus ancoradouros. Por outro lado, achamos que o rio corre numa só direção, embora alguns rios mitológicos tenham correntes duplas, como ensina o mago dos mitos e do olhar distanciado, Claude Lévi-Strauss. Num sentido preciso, tais cursos d’água revelam uma surpreendente coexistência.
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Sejamos realistas: você, leitor, já tentou atravessar a nado algum rio? Eu quase morri aos 26 anos nas águas azuis do rio Tocantins, de cuja poderosa correnteza consegui escapar construindo, como o herói do conto de G. Rosa, uma salvadora “terceira margem”. Graças a ela, pude ser resgatado pelos meus salvadores.
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PS: Esbocei essa crônica uns 17 dias antes do afogamento de Domingos Montagner para cuja família eu envio o solidário afeto de quem também viveu uma perda brusca e imperdoável. Há mais na vida intelectual do que pensamos. Literatura não leva ao céu das utopias, mas salva criando essas “terceiras margens”.