EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|A propósito de Nice

Em férias, um tour cultural-gastronômico acrescido de duas autoimpostas tarefas, como localizar o que restasse da mítica casa de Gerald e Sara Murphy na praia de La Garoupe, em Antibes

PUBLICIDADE

Atualização:

Côte d’Azur, abril de 1991. Minha primeira viagem à Provence. Começaria por baixo, pelos Alpes Marítimos, subindo de carro até Paris. De férias, seria um tour cultural-gastronômico acrescido de duas autoimpostas tarefas: localizar o que restasse da mítica casa de Gerald e Sara Murphy na praia de La Garoupe, em Antibes, meca estival de Picasso, Hemingway, Fitzgerald & o restante da turma que nas demais estações do ano faziam de Paris uma festa, e entrevistar um de meus heróis literários, Graham Greene. Dessa agenda, só um programa deu chabu.

PUBLICIDADE

Quando obtive o endereço de Greene, através de sua editora na França, ele ainda morava em Antibes, a 21 km de Nice, mas nenhuma alma caridosa da Bernard Laffont me informou que o escritor havia meses se recolhera ao Hospital da Providência, em Vevey, perto de Genebra, na Suíça, onde Chaplin vivera seus últimos anos. Só fui saber disso na manhã de 4 de abril, ao bater os olhos na manchete do jornal Nice-Matin: Le Détective de Dieu Est Mort. Belo título, possivelmente do autor do necrológio, o poeta russo-francês Alain Bosquet.

À guisa de consolo, visitei o restaurante Chez Félix, onde Greene almoçava diariamente. Em Antibes, dias depois, me consolaria com o Museu Picasso alojado no Château Grimaldi. Mas antes, já que estava em Nice e um tanto saturado de flanar a esmo pelo Calçadão dos Ingleses (vulgo Promenade des Anglais), improvisei nova missão: um tour pelos locais em que Hitchcock filmara Ladrão de Casaca (To Catch a Thief). Fazia então 20 anos que encasquetara de organizar semelhante peregrinação às locações de Um Corpo Que Cai em São Francisco. Hoje é mole, várias agências de turismo locais oferecem “Vertigo Tours”, mas fui obrigado a partir do zero em 1971.  Nenhum outro filme explorou Nice com a mesma dose de charme e opulência visual de Ladrão de Casaca, e não me esqueci de sopesar os méritos do curta A Propósito de Nice, pioneira exploração documental do balneário e sua fauna que Jean Vigo realizou em 1930. E que, por coincidência, abria com um foguetório igual ao que Hitchcock utiliza como metáfora sexual em seu whodunit mediterrâneo. 

Dispensei o óbvio, o trivial - a orla, o calçadão, o hotel Negresco - e fui direto às (supostas) novidades topográficas. Mesmo sem me preocupar em seguir as locações na ordem em que elas se sucedem na tela, comecei, talvez por comodismo logístico, pela cena de abertura. Não localizei a agência de viagens que em sua entrada estampava um cartaz com os dizeres “If you love life you’ll love France” (Se você ama a vida, vai amar a França), indício de que Hitchcock rodara a breve tomada inicial nos estúdios da Paramount. Na tomada seguinte, uma mulher grita “pega ladrão” da sacada de um hotel da Promenade des Anglais. Também pensei que fosse o Negresco. Pela localização, é onde há tempos fica o Palais de la Méditerranée.

No número 1 da Avenida Maréchal Foch encontrei o prédio da chefatura de polícia e no Boulevard Jean Jaurès, o mercado das flores em que John Robie, o aposentado ladrão de casaca interpretado por Cary Grant, se encontra com o fleumático agente de seguros da Lloyd’s de Londres H.H. Hughson (John Williams). Para localizar o resto, tive de ir a Mônaco (13 km ao norte), Cannes (33 km ao sul) e arredores. Bendita suspensão da descrença geográfica a que se permite o cinema, conectando lugares que na tela parecem contíguos, mas na realidade distam às vezes muitos quilômetros. 

Publicidade

O hotel, por exemplo. Tem-se a impressão que Frances (Grace Kelly, que nunca esteve tão linda e tão diafanamente vestida por Edith Head) e a mãe (Jessie Royce Landis, que, aliás, faria a mãe de Grant em Intriga Internacional, embora fosse apenas cinco anos mais velha que o ator) hospedam-se no Negresco. Ledo engano: se assim fosse, não faria sentido Frances ir à praia defronte o Carlton, na Croisette, o calçadão de Cannes.

O restaurante al fresco de Bertani (Charles Vanel) tampouco fica em Nice ou Cannes, e sim em Port Hercule (Montecarlo); tinha jeito de ser o L’Hirondelle, cuja mureta é de gesso, não de ferro como a do terraço usado no filme. Reformas e benfeitorias do gênero afetam um bocado esse tipo de pesquisa cinéfilo-arqueológica. Só logrei identificar corretamente a missão principal de Um Corpo Que Cai ao constatar que o campanário explorado no filme fora artificialmente acrescentado a pedido de Hitchcock. O campanário original da Missão de San Juan Bautista fora destruído por um incêndio quase 20 anos antes. 

A vila onde Robie curte o seu ócio com dignidade se debruça sobre as escarpas de Saint-Jeannet, uma das 13 comunas que compõem a Rota dos Vilarejos dos Alpes Marítimos, com o Mediterrâneo sempre ao fundo. Ao perseguir Robie, o Citroën da polícia niçarda passa desembestado por Bar-Sur-Loup, Tourettes-sur-Loup e por uma avenida (Verdun) e um boulevard (Leclerc) da adorável Èze. A vertiginosa disparada do Sunbeam-Alpine MK pilotado por Grace Kelly (sem seus óculos para miopia), cruza a Avenue de la Victoire, na comuna de La Turbie, e nos leva até um tosco mirante em Beausoleil (na Avenue des Combattants en Afrique du Nord), onde ela e Grant saboreiam aquele insosso piquenique. Sequência premonitória: 28 anos mais tarde, Grace, morreria ali perto, dirigindo um Rover 3500. 

A princesa de Mônaco não foi, evidentemente, enterrada no velho cemitério de Cagnes-sur-Mer, a última morada de Foussard (Jean Martinelli), pai de Danielle (Brigitte Auber), a “ladra sem casaca” - desculpe o spoiler. Não me interessei pelo túmulo de Grace, dizem que austero, bem plebeu, na Catedral de São Nicolau, em Mônaco, por não fazer parte do filme. O de Cagnes-sur-Mer fica na Avenue de Verdun, 15 km distante de Nice.

O ponto alto do tour foi a visita à Vila Sanford, onde Grace e Grant iniciam o passeio que culmina no piquenique. O nome é fantasia, inventado para o filme. A vila é um palácio cercado de jardins: Château La Croix-des-Gardes. A 213 m acima do nível do mar, talvez ofereça a melhor visão panorâmica da Riviera Francesa; da baía de Cannes sem dúvida alguma oferece. Foi erguido em estilo florentino, poucos meses depois do fim da Primeira Guerra Mundial, e sofreu algumas alterações arquitetônicas, inclusive por seu proprietário mais famoso, o magnata das águas Perrier. Alain Resnais filmou em seus jardins O Ano Passado em Marienbad. Sua entrada, porém, não fica no Boulevard Leader, onde deveria estar, mas a 20 km dali, no Boulevard Schley. Outra armadilha de Hitchcock.

Publicidade

Mas não a última. O suntuoso bal masqué que fecha o filme, aparentemente ambientado no interior do castelo, foi todo filmado num palco dos estúdios da Paramount.