A origem e o mito da baderna

A história da bailarina italiana que revolucionou a cena artística carioca no 2.º Reinado, desafiou o moralismo de uma sociedade conservadora e acabou entrando para o dicionário. Por Sergio Amaral Silva, especial

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Por Agencia Estado
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Você conhece a origem da palavra baderna com o sentido de arruaça, tão ao gosto dos agentes do autoritarismo que dominou o Brasil a partir da década de 1960? Pois está lá, no Aurélio. Era o sobrenome de uma dançarina italiana que esteve no Rio de Janeiro em meados do século 19. Mas que fique bem claro: não era a artista, mas seus fanáticos admiradores que gostavam de confusões e brigas de rua. Daí a dizer-se que os tumultos tinham sido provocados pelo ?pessoal da Baderna? ou pelos ?baderneiros de sempre? foi um passo. A história dessa personagem que entrou para o dicionário está no livro Maria Baderna, de Silvério Corvisieri. O autor, italiano, foi deputado do Partido Comunista italiano. Para escrevê-lo, veio ao Brasil, e por meio de pesquisas em arquivos e jornais de época, resgatou a trajetória da jovem bailarina que empolgou a sociedade carioca dos primeiros anos do Segundo Reinado. Marietta (que no Brasil também era chamada de Maria) Baderna nasceu em Castel San Giovanni, em 1828. Desde cedo mostrou inclinação para a dança, estudando com um reconhecido mestre da época, Carlo Blasis. Bonita e talentosa, já aos 15 anos era saudada como uma das revelações mais promissoras em Milão, sede do Scala, um dos teatros líricos mais importantes do mundo. Depois de uma temporada de grande sucesso na Inglaterra, em 1847, voltou à Itália, mas por pouco tempo. Seu pai, Antonio, era republicano e tinha sido derrotado no movimento democrático de 1848. Para fugir à repressão, levou a filha a aceitar um convite para se apresentar no Brasil, onde desembarcaram no ano seguinte. Como primeira-bailarina do Scala, Marietta despertou desde o início a atenção dos brasileiros, que nunca tinham visto uma artista dessa categoria. No principal teatro carioca, o São Pedro d?Alcântara, conheceu uma formidável seqüência de êxitos, não sem obstáculos. Um deles, a epidemia de febre amarela que assolou o Rio em 1850, matando milhares de pessoas e, entre elas, 45 dos 55 artistas que tinham chegado com Baderna. O autor diz que Marietta, de personalidade rebelde, ?vivia de maneira excessivamente liberal para o Brasil de D. Pedro II?, considerado ?uma rainha Vitória de calças compridas?. Além de manter uma ?convivência livre? com o amante francês, ela às vezes dançava em bailes, praças e praias. Nessas ocasiões, longe da rigidez dos palcos, preferia os ritmos ?calientes? como o sensual lundum, então relegado aos lugares freqüentados por escravos. Num ambiente de moralismo e preconceito (ao menos para efeito público), pode-se imaginar o escândalo quando, no Recife, em 1851, Baderna resolveu apresentar um lundum. Apesar dos protestos racistas, a temporada foi mais um sucesso. E marcou o início do ?abrasileiramento? da artista, cujo primeiro contato com as danças dos negros e mulatos tinha sido pela leitura das Cartas Chilenas, do poeta e inconfidente Tomás Antônio Gonzaga. Sorriso ambíguo - Nos anos seguintes, o panorama artístico do Rio de Janeiro alterou-se. O público interessava-se cada vez mais pela ópera e pelas cantoras, o que levou à marginalização da dança. As referências à Baderna na imprensa escasseiam, sabendo-se que ainda estava no Rio, em 1856, ?mas inativa?. Reapareceria na França em 1863, onde fez sua despedida dos palcos, em 1865. Depois, veio o silêncio, ajudando a alimentar o mito. O mito da bailarina que foi amiga do grande ator João Caetano, contemporânea de cantoras famosas como a Candiani e elogiada por escritores e jornalistas como José de Alencar ou José Maria da Silva Paranhos, o futuro Visconde do Rio Branco. Mito de uma mulher que ousou desafiar as normas de uma sociedade conservadora e escravista e cujo fantasma, segundo Corvisieri, ?ainda ronda no céu do Rio, com um sorriso ambíguo (...), como se quisesse conservar uma margem de vaga e etérea elegância continuando sua dança, estrela entre as estrelas?. Maria Baderna, de Silverio Corvisieri, tradução de Eliana Aguiar. Record, 240 págs., R$ 28,00. Sergio Amaral Silva é jornalista, economista e escritor.

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