PUBLICIDADE

A estranha dor do outro

'Yalo', de Elias Khoury, pinta um amargo retrato do Líbano depois de 15 anos de guerra civil

Por MICHEL SLEIMAN
Atualização:

Como se conta - e se conta muito bem - em 349 páginas uma história cujo enredo está circunscrito a algumas sessões de tortura e poucas confissões do torturado? A resposta está na edição brasileira de Yalo, outra contribuição da tradutora do árabe Safa Jubran para explorarmos o universo criativo do romancista libanês Elias Khoury, autor do bem saudado romance Porta do Sol publicado no Brasil em 2008 pela Record, a mesma editora do novo livro. Yalo é o nome do protagonista de uma história que se passa em 1993, contada a partir de um cárcere na Beirute após a guerra civil que assolou o Líbano por 15 anos. Entre uma sessão e outra de tortura, Yalo é levado a confessar crimes de roubo, estupro e participações em atividades terroristas. O tempo bastante curto da narrativa e os poucos episódios a que ela remete só engordam essas páginas do romance, porque Elias Khoury é mestre num tipo de narrativa que concentra a genialidade na voz da narração. O romance segue uma trilha similar à do anterior Porta do Sol. Contudo, se distancia um tanto dele ao levar para a narração não mais a afluência de histórias à maneira de Sherazade e sim a do relato que percorre os caminhos curtos do labirinto. E faz isso se conduzindo por uma linha que inibe a possibilidade de errância estéril. O resultado é a composição de um retrato ao qual se chega em diferentes momentos e segundo distintos focos de luz. A cada momento e incidência, o rosto ganha maior clareza, mesmo que em seguida este volte a mergulhar na escuridão. O jogo, proposital, entre luz e sombra força a memória a ocupar o primeiro plano da narrativa. Dessa forma, Khoury sugere que a realidade só é acessível por um resgate do interno - por dedução, portanto, vale dizer, por suposição. Para ver é preciso fechar os olhos, nos diz o narrador: “Yalo não entendeu o que estava acontecendo. Ficou de pé diante do interrogador e fechou os olhos, como sempre fazia quando encarava o perigo”. A Yalo também é pedido que faça uma confissão por escrito. Entretanto, a escrita de Yalo, bem como a fala dele e a revelação feita de idas e voltas do narrador, ilumina apenas partes da verdade que o interrogador espera ouvir como confissão. Por conta do requerido, a escrita de Yalo acaba esfacelando-o enquanto objeto de sua própria narração: “A história ficou clara para mim, para vocês e para ele. Coitado do Yalo”. Tal recurso está longe de ser um estilo gratuito de Khoury. A força deste seu relato reside na constatação de que a realidade do pós-guerra implica o adoecimento da percepção, um anestesiamento que é identificado como quebra. O sintoma é tanto interno como externo. O rosto de quem viveu a guerra é como um edifício danificado que ficou sem restauração, ou que foi só parcialmente restaurado. Os rostos passam e se veem reciprocamente, mas um não reconhece a dor do outro. Após a guerra, os mesmos rostos olham o prédio parcialmente danificado, contudo não veem nele rotura ou conserto. Para isso se dar será necessária uma intervenção externa. O prédio e o rosto atingidos pela guerra são a parte externa que esconde uma realidade só atingível pelo olhar de quem viveu longe da guerra. É um processo que tem ignição no contraste. Khoury pertence à geração que viveu os conflitos libaneses e palestinos e sobreviveu a eles. O homem Khoury pode ter aquele rosto que passou pela guerra, porém sua obra de ficção e seu trabalho de jornalista e crítico buscam atuar como uma força do externo. Yalo e Porta do Sol sondam a intimidade do relato histórico usando uma linguagem que é instrumento de intervenção. A escrita de seus romances é um instrumento invasivo, como o cirúrgico que leva à cura após a dissecação. E é assim porque essa escrita opera uma ferida mal cicatrizada. Gerações e gerações de médio-orientais filhos da guerra. Por força do resgate da memória empreendido pela narração, o protagonista é também as linhas da ascendência e da descendência, embaralhadas, interrompidas. Depois que o pai abandona a mulher nos primeiros dias do casamento, Yalo é registrado como filho do avô materno. Este passa a ser o pai, e a mãe passa a ser a irmã. O avô fora filho de pais siríacos mortos na chacina que os otomanos fizeram no início do século 20, no entanto, logo o menino é adotado por um curdo muçulmano, a quem abandonará mais tarde para ser criado pelo tio sobrevivente. Na outra ponta do tempo, a leitura que Yalo faz da realidade só pode estar permeada pela transferência, algo natural no sujeito, mas que acusa nele certa míngua: a vítima de seus estupros é sua amante, e os objetos roubados são uma pequena benesse. O destino remexido desses personagens revela um traço insólito que pode ser terrível: a linhagem da guerra que embaralha a psiquê e nos torna enfermos biológicos ou sociais, poderá ela algum dia afetar a moral?MICHEL SLEIMAN É PROFESSOR DE LÍNGUA E LITERATURA ÁRABE DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. ORGANIZOU E TRADUZIU A ANTOLOGIA 'POEMAS', DE ADONIS (COMPANHIA DAS LETRAS), QUE ACABA DE CHEGAR ÀS LIVRARIAS BRASILEIRAS. É AUTOR DE 'ÍNULA NIÚLA' (POESIA, ATELIÊ).TRECHO “Leram para ele as confissões em árabe culto, mas o moço magro assinou no dialetal. Na primeira vez assinou o nome em siríaco, o interrogador pegou o papel e levantou as sobrancelhas, que mais tarde seriam levantadas na delegacia e na prisão, quando veio visitá-lo para lhe ordenar que reescrevesse o que havia escrito, e isso significava que as coisas não estavam bem e que a investigação poderia levá-lo à tortura.”

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.