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Coluna quinzenal do escritor Ignácio de Loyola Brandão com crônicas e memórias

Opinião|A comer dióspiros aveludados

No Mercado de Ouriques escolhi um que me parecia laqueado de tão vermelho

Atualização:

Para Marielle Franco, assassinada no Rio. Quem será amanhã? LISBOA – Amigos muito amados tinham me recomendado um pequenino restaurante na Rua das Flores. Depois de marcação cerrada nos encaixamos e foi magnífico termos sido entregues às mãos de Carminda (na cozinha), José no balcão e Susana (a filha) no salão. Este é um “dos segredos mais mal guardados de Lisboa”, diz Tiago Pais, que sabe tudo sobre as tascas na cidade. Adorável o bacalhau à lagareira, os croquetes de vitela, o coelho à caçador e o arroz de leite. Feliz, de repente me veio uma questão: por que havia algo familiar? 

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Logo descobri. Era a rua. A Tragédia da Rua das Flores é um romance póstumo de Eça de Queirós, história de um incesto, escrito em 1877, mas publicado somente 25 anos depois que Eça morreu. Eu olhava para os prédios e queria saber de que janela teria Genoveva, a personagem, saltado ao saber que se apaixonara e transara com o próprio filho.

Aos sábados, às 10 horas, grupos saem da Praça Luís de Camões seguindo para os itinerários das personagens de Eça. Onde viveram, amaram, sofreram. Tome uma ginginha, coma um pastel de nata e siga o professor David Santos, “queirosiano” de primeira. 

Outro dia, assim que pagamos a conta na tasca Toma lá, Dá Cá, onde fomos levados por Bizuka e Zwy, a garçonete conferiu o dinheiro, apanhou várias moedas e sorrindo devolveu algumas: “Obrigada, não é preciso deixar tanto”. Ficamos estupefatos. Não há outra palavra. Em momentos assim percebemos que vivemos em um país selvagem. Lisboa ferve com turistas, mas há uma vantagem, não são, por enquanto, aquelas multidões devastadoras seguindo guias com guarda-chuvas colorido, nem atravancam calçadas, superlotam os museus. Os turistas em Portugal estão na quantia ideal para o comércio, os restaurantes e bares e o consumo de grifes. E para a economia.

Pegamos a temporada de saldos e descontos e me admirei, não vi as palavras off, sale e discount nas vitrines, ou montras como dizem. Tudo em português mesmo. O Banco de Portugal divulgou que em fevereiro os turistas deixaram no país ¤ 42 milhões por dia.

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Tive sorte, na semana em que cheguei, a caminho de Póvoa de Varzim, a revista Time Out colocou nas bancas uma edição especial dedicada à reconquista da Baixa, ou seja o território que vai do Terreiro do Paço ao Rossio, onde, asseguram, “resiste a maior rede de lojas históricas de Lisboa e se preserva um dos melhores circuitos de tascas e balcões para almoçar à lisboeta”. 

Há outra coisa fundamental que dá inveja. Se você coloca o pé na faixa, os carros param, você atravessa tranquilo. Em Póvoa de Varzim, ao norte, não vi um único semáforo. Essas coisas vêm com a educação, mas sabemos que aqui no Brasil as verbas para ensino foram diminuídas, para aumentar as do asfalto em nossa cidade e as campanhas políticas de políticos obscenos.  Algumas dicas da Time Out: se você tem interesse, como eu, em armações de óculos diferenciadas passe pela Optica Jomil, Rua do Ouro 249. Há peças de ¤ 90 e também algumas de 750 a mil. Como o meu interesse são chapéus, indico dois endereços. A Chapelaria na Rua do Comércio 16 e a Azevedo, na Rua na Praça D. Pedro IV, 69. Mudam mesmo a cabeça da gente. Tostas a metro? Procure o Café Penta, na Rua do Ouro, 115. Quer uma bela vista da Baixa? Vá ao número 276 da Rua dos Fanqueiros, suba ao último andar e contemple. 

Imaginem se um escritor não vai a uma livraria? A Bertrand do Chiado, fundada em 1732, é considerada a mais antiga do mundo. Nos fundos ainda há um trecho de uma parede original. Agora, adoro mesmo passar o domingo entre as prateleiras vertiginosas da Ler Devagar, na LX Factory, conjunto de fábricas de 1846 abandonado e depois restaurado e hoje ponto descolado, onde encontrei o romance Relógio Sem Ponteiros, de Carson Mccullers, de 1961, que procurava havia 20 anos. A LX fica na margem do rio, embaixo da monumental ponte 25 de Abril. Só vendo para acreditar o que é este lugar. 

Tarde fresca, no Mercado de Ouriques escolhi um dióspiro (*) que me parecia laqueado de tão vermelho, a polpa um creme aveludado e comecei a caminhar degustando devagar. Lisboa é ideal para circular a pé. Eu tinha vontade de trazer o prefeito de São Paulo, o demagogo da limpeza, para ver o que é limpeza pública e calçamento. Dá gosto caminhar, é fácil caminhar. No final de semana, vá ao Cais Sodré, olhando cada parede azulejada, cada portal, janela, terraço, cafés de uma portinhola. Pegue a balsa (compre ida e volta), atravesse para Cacilhas. Ao descer, pegue a primeira rua à direita e entre no restaurante A Cabrinha. Além do cabrito que se desmancha, vocês encontram tudo o que o mar produz de bom, de lagostas a camarões, mariscos, ostras, caranguejos, patolas, percebes, lulas, polvos, mexilhões, sapateiras, sardinhas. Faça sua reserva ou prepare-se para esperar, tomando uma bebida refrescante e comendo camarões à provençal. * Não vá ao dicionário: Dióspiro é o nosso caqui.

Opinião por Ignácio de Loyola Brandão
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