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‘Zama’, o novo filme de Lucrecia Martel, averígua o mal-estar contemporâneo

Lucrecia Martel fala de seu filme adaptado do livro de Antonio de Benedetti que apaixonava Borges e Bolaños

Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Coproduzido pela Bananeira Filmes, de Vânia Catani, o novo longa de Lucrecia Martel, Zama, estreia em janeiro nos cinemas brasileiros. A diretora argentina veio ao Rio, durante o festival, para apresentar o filme. Sentaram-se os três para conversar com o Estado – Lucrecia, Vânia e Matheus Nachtergaele. A parceria começou a nascer há muitos anos, quase dez, no Festival de Havana.

Cena do filme 'Zama' Foto: Vitrine Filmes

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Vânia aproximou-se da grande autora propondo-lhe uma adaptação de Clarice Lispector. Lucrecia interessou-se vagamente, mas estava comprometida com outro projeto. Ia fazer uma ficção científica – El Eternauta, de Hector G. Oesterheld –, na qual chegou a trabalhar durante dois anos.

Foi justamente a ficção científica cultuada por Jorge Luis Borges e Roberto Bolaños que a levou a Zama. Em busca de locações, Lucrecia percorreu o noroeste argentino. Levou um livro, e foi o relato de Antonio de Benedetto que terminou por absorvê-la. Quando deu-se conta, nem estava mais preocupada com a não realização de El Eternauta. Zama virou uma obsessão. Foram nove longos anos até a estreia em Veneza, no começo de setembro. Depois, antes do Rio, o filme passou no Festival de Nova York. Chega agora à Mostra. Lucrecia contou: “Boa parte desse tempo foi ocupado pela montagem financeira. Está muito difícil fazer cinema de autor na Argentina. A boa surpresa foi que Zama estreou em Buenos Aires com um público que não tive em meus filmes anteriores.”

Ao chamar Vânia Catani – partiu da diretora o pedido para que ela se integrasse ao projeto –, Lucrecia esclarece que precisava mais que a ‘plata’ brasileira. “Precisava desse cara aqui (Matheus). Ele trouxe uma coisa muito importante. Sua inteligência, sensibilidade, e o Brasil inteiro.” Zama é sobre um funcionário da Coroa espanhola na Argentina colonial. Zama está cansado da desolação dessa paisagem. Quer voltar à ‘civilização’, mas seu superior, na administração da colônia, o retém no posto. É um filme sobre a espera, feito por uma diretora que teve de esperar muito para concluir seu filme.

Zama não é somente o primeiro filme de Lucrecia desde A Mulher sem Cabeça, de 2008. É sua primeira adaptação. Seria, de qualquer maneira, se houvesse concretizado El Eternauta. Todos os seus ‘guiones’ anteriores eram originais. Ela diz: “O filme é sobre uma América Latina muito diferente da atual, uma América Latina que não existe mais e ao mesmo tempo você encontra todos os nossos problemas seculares. Um continente indefinido, difuso.”

Zama, interpretado por Daniel Gimenez Cacho – ator de Arturo Ripstein em Vermelho Sangue –, quer voltar para a mulher, o filho. Quer ser transferido para um centro maior. A espera o contamina. A solidão, também. “É um filme sobre a nossa herança colonial, o que obviamente inclui a repressão da Igreja, mas desde o início eu deixei claro para todo o mundo que não ia querer nenhum signo religioso. Isso dificultou minha vida muito mais que imaginava. Qualquer móvel de época tem sempre a cruz, as igrejas, os vilarejos, eu não queria nada.”

A paisagem chega a desconcertar. Um lago, a selva, lhamas – e palmeiras tropicais. “Parece uma liberdade minha, mas essa diversidade realmente existe na Lagoa de Chascomus, que nem dista muito de Buenos Aires – cerca de 200 Km. A lhama estava no lugar. “São animais muito curiosos. Não imaginava as cenas com a lhama, mas ela vinha naturalmente, atraída pela luz da câmera. Nosso medo era que ela cuspisse na objetiva. É o que esses bichos mais fazem.” Lucrecia Martel, durante o processo de Zama, abandonou Buenos Aires e voltou a viver em Salta, onde filmou A Piscina, sua obra-prima de... “Buscava uma qualidade de vida melhor, e ao mesmo tempo gosto desse isolamento, do convívio com os animais.” 

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Suas instruções para Matheus Nachtergaele surpreendiam o ator. “Ela me pedia para observar as galinhas, que têm um cérebro desse tamanhinho.” Matheus faz um mítico bandoleiro a quem a colônia credita todos os seus infortúnios – e que Zama é encarregado de capturar. “Ele é um mito, nem sabemos se existe de verdade. Foi muito bacana de fazer. E essa selva, esses índios...” Matheus já teve, como ator e diretor, a experiência de fazer o próprio filme na Amazônia, portanto na selva, A Festa da Menina Morta. Lançou-se nesse outro projeto visceral, e só tem admiração por Lucrecia. Ela confessa que ainda não tem distanciamento para falar de seu filme. “Está sendo tudo muito recente.” Mas reflete: “Acho que Zama seduziu todos esses grandes autores (Borges, Bolaños) porque, a par da escrita, e se trata de grande literatura, o livro expressa um mal-estar muito contemporâneo. Essa espera, a incerteza quanto ao futuro. Em toda parte, as pessoas captam esse sentimento. É uma coisa que está na nossa origem. É muito contemporânea. E é universal.”